quinta-feira, 5 de novembro de 2009

JANELA PARA O CÉU


Acordei com um soco de angústia explodindo no peito. Novamente o pesadelo, o mesmo de sempre. Na iminência de ser descoberta como a autora de um crime que não cometi. A sensação de acuamento, o peso das evidências, tudo me deixa quase sem respirar. Embora não possa provar, sei que não sou culpada. No entanto, restam poucos minutos para que cheguem à conclusão de que sou eu a criminosa. E aí, diante de minha cara de pânico e na ausência de protestos, serei olhada e apontada como objeto de horror. Na morte do homem, não resta fuga possível, TODOS os indícios conduzem a mim. Não sei como agir diante de algo que conspira contra minha inocência. Inocência esta que, por minutos ainda mais aflitivos, suspeito não ser verdadeira.
Sento-me na cama e, bem à minha frente, a janela aberta de par em par escancara um céu limpo. Vejo minha mão que desliza pelo lençol e escuto, não o roçar do tecido, mas o farfalhar das folhas musicadas pela brisa. Nenhum ruído de trânsito na rua, nenhum grito de menino, só um galo cocoricando bem ao longe. No quadrado que me aparece emoldurado pela janela, o céu está pintado de um anil pálido, sem qualquer nuvem a manchar sua cor. Deve ser muito cedo, que horas serão? Ao invés de procurar o relógio, estico-me toda, braços e pernas na direção daquele azul e avalio como os pássaros devem gostar de voar naquele cenário.
Passo os olhos em volta e só então estranho o ambiente. Não é meu quarto. De chofre, cheia de euforia, lembro-me. Estou em um hotel e Florença está aos meus pés, é só descer o elevador. Caminharei e, mesmo sem pressa, poderei alcançar a Ponte Vecchio sem muito esforço. A angústia do pesadelo se desfaz por inteiro e agora estou entregue à grande aventura.
Há uma semana fugi da mesmice, do marido de tantos anos, das complicações rotineiras e embarquei sozinha para um sonho. Fiz questão de viver meu segredo. Um bilhete em envelope deixado junto à louça do café da manhã, já arrumada como sempre de véspera, deve ter provocado um grande rebuliço na cabeça de João e em toda a casa. Sorri, falando sozinha: paciência. Eu a tive tanta, por tantos anos! Um dia, ao acordar mais uma vez do pesadelo recorrente, deu-me um estalo e descobri que teria que fazer minha hora acontecer. Logo no dia seguinte comprei uma passagem para Roma - paga à prestação - e eis-me aqui à beira do Rio Arno, prestes a caminhar pela piú bella Firenze e, maravilha das maravilhas, a alguns passos de apreciar o David, de Michelangelo.
- Dane-se o mundo, viva o sonho!
Nesse ponto, ouço meu nome. Surpresa, volto-me na direção da voz e deparo com João de pé, ao lado da cama, me solicitando algo.
Pombas! Como então não estou em Florença ?!?
Após alguns segundos de total aturdimento, de súbito entendo. Plena de frustração, rosno qualquer resposta incompreensível e, em contraponto, o seu olhar tenta se desviar do abismo do meu rancor.


Maria Luiza de Carvalho
mluiza_carvalho@yahoo.com.br

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A BOUBOULINA DO VALDO


Arlete passa as mãos pelos cabelos compridos, tingidos com mechas louras. Satisfeita consigo mesma, conseguiu ficar na praia por todo o tempo de sol forte: está morenaça! Mas agora os prédios da orla de Copacabana começam a fazer sombra na areia, no inverno isso acontece mais cedo. É hora de reunir sua canga, dobrá-la curtinha em torno de seu quadril, a havaiana, a cestinha com a chave de casa. Pronto, só resta caminhar em seu andar gingado e rebolativo que a plebe dos três quarteirões, que a separam de casa, tanto gosta. Quando pensa nisso, nos fiu-fius que terá que ouvir até lá, murmura entre dentes – gentalha! Pensa com desprezo nos homens e pivetes que sem dúvida estarão em seu caminho, embora o sorriso estampado no rosto nos sugira que está longe de se irritar com as, vamos dizer assim, homenagens que recebe.
Mas não, ela não é mulher de qualquer um, ela é classuda e só aceita aproximações com alguém que lhe mereça. Terá que ser alguém bonito como era seu amado, que Deus o tenha, mas também com situação bem estabelecida, para lhe proporcionar o conforto que merece. Por instantes, passam nuvens em seu olhar, ao lembrar do desastre de ônibus que acabou com a vida do seu Arlindo, tão moço ainda, nem teve tempo de lhe deixar qualquer coisa de herança, coitado. Mas já se passaram vinte e quatro anos e ela já virou essa página, já casou e descasou três vezes, a vida continua, não tem jeito. Quem diria, tanto tempo se passou, mas ela continua enxuta, todos pensam que é dez anos mais nova do que de fato é. Ela é que não desmente...
Ainda bem que herdou de suas tias solteironas o apartamento quitinete, assim mora em casa própria, nem tão perto da praia como gostaria, mas em Copacabana, lugar bacana. Ao início de sua caminhada, se dá conta que hoje é quinta-feira, dia de feira na Rodolfo Dantas, que gosta de freqüentar no seu finzinho, quando fica uma patota, todos comendo e bebendo na barraca do Zeca, bom demais! Apesar dos ultimatos do fiscal, a muvuca acaba se estendendo até as 2 da tarde. Ri sozinha quando lembra que Zeca insinua que quando ela está presente, o Genivaldo, fiscal da feira, afrouxa um tanto suas regras porque lhe faz a corte, quer lhe agradar. Arlete não lhe dá confiança (imagina!), um muquirana morador de Campo Grande, não tem onde cair morto, ainda por cima metido a autoridade exigente com o cumprir da lei. Um chato é o que é! Se bem que, Arlete é obrigada a confessar, se considerarmos só sua estampa, o moço não é de se jogar fora. E, apenas por isso, ela não o escorraça, mas também não lhe dá confiança, bem entendido. Faz-lhe bem ao ego, não nega.
Valdo, que detesta que o chamem de Genivaldo, não vê a hora de terminar o trabalho e ir embora. Hoje está particularmente ansioso, pois marcou de ir ver a exposição do célebre Houdon, no Museu Histórico Nacional, no Centro, com entrada gratuita hoje à tarde. Oportunidade raríssima, que ocorre graças ao ano da França no Brasil. Conhece a maioria de suas belas esculturas de estilo neoclássico a partir das entradas virtuais no Louvre, que pratica com regularidade pela internet. Com ponta de amargura, pensa que jamais terá dinheiro suficiente para ir a Paris, muito menos com sua vida de boemia e farras, onde o dinheiro - sempre parco - escorre sem nem se dar conta. O seu salário é bem menor que o mês, ainda mais curto depois que teve a pensão da ex-mulher descontada em folha. Pelo menos não tem filhos para tornar a vida ainda mais complicada. Mora em casa alugada, nas lonjuras de Campo Grande, mas o que paga é de acordo com o pouco que ganha. Para ser honesto, não trocaria a casa aonde mora com quintal e ainda espaço para seu ateliê, por qualquer desses apartamentos pequenos de Copacabana. Vez ou outra consegue vender uma de suas telas de paisagens do Rio, lá na Praça General Osório, amealhando um extra modesto.
Mas, que diabos, hoje irá conhecer pessoalmente o que restou nessa vida de Jean Antoine Houdon, algumas de suas obras mais célebres, como o busto de Voltaire, por exemplo, com uma expressividade que emociona. Tudo isso ele explicou à atual namorada que de arte nada conhece, mas que gosta de acompanhá-lo nas suas andanças pela cidade, nos eventos de preferência gratuitos que não são assim tão raros de acontecer.
Pela enésima vez lamenta os descaminhos em seus quarenta e um anos de vida que o tornou fiscal da prefeitura, responsável pelo andamento das feiras livres da zona sul. Vamos, cara, não seja mal agradecido, você conseguiu um emprego público que muita gente boa gostaria de ter. É verdade, não falta quem queira estar no seu lugar, com um trabalho até agradável, onde tem de madrugar, para chegar junto com a bagunça dos feirantes, mas que acaba cedo, lá pelas duas da tarde. É, não é assim tão mal, dá até para se divertir um tanto e ainda sobra um tempo para usar seus pincéis e tomar uma cerveja com os amigos, que é do que mais gosta.
Chegado a brincar com as pessoas, conhece-as quase todas, feirantes e frequentadores mais assíduos e, modéstia à parte, considera-se simpático e querido pela maioria. O Zeca, por exemplo, dono de uma das barracas de temperos e pingas, super gente boa, adora mangar de deus-e-todo-mundo, incluindo os frequentadores de sua venda de batidas e caipirinhas depois do meio dia. Olha, lá vem chegando a dona Arlete, velhusca crente que abafa, coitada. A bem da verdade, Valdo é obrigado a confessar que se comove com suas faceirices e por isso sente-se quase na obrigação de corresponder a seus esforços de sedução. Quando não está com sua canga mal enrolada no quadril, fazendo-se de sensual, Arlete veste calças justíssimas de cintura baixa, deixando aparecer sua pele esturricada pelo sol, com protuberâncias notórias e flacidez de cinquentona e-lá-vai-fumaça. O Zeca insufla a vaidade da velha e Valdo surfa na onda, faz de conta que lhe arrasta a asa, com mesuras cheias de malícias. Ela finge que o esnoba, ele finge que se magoa e o amor-próprio da quase-idosa fica bem satisfeito. Riem muito, mas na presença da dona Arlete, desempenham o papel a sério. Divertem-se todos, pois o geral das pessoas percebe a encenação, se bem que ela também represente seu papel de quem não-está-nem-aí, embora saia saltitante e feliz.
É curioso, reflete Valdo, mas sinto que as brincadeiras, que dona Arlete nos propicia, despertam um inexplicável e genuíno sentimento de carinho e afeto, que transcende aquele cenário de pequenas vaidades e enganos. No fundo, talvez nos identifiquemos todos com o que há de mais humanamente patético naquela personagem que a velha representa. Digo ao Zeca que a Arlete é minha Bouboulina, aquela do Zorba, o grego, filme que ele não viu, mas que gosta só por me ouvir contar.
É, pensando bem, não tenho muito do que me queixar. E hoje, o Houdon ainda vai me lavar a alma, se vai.


Maria Luiza de Carvalho
mluiza_carvalho@yahoo.com.br

GALINHA GENÚ



- Prometi, tá prometido, nunquinha qui falo. Por mim, doutô Tonho ía saber é nunca. Se acabou sendo de sua ciência, como depois apercebi, tenho culpa não.
- Tou contando procês, mas sei que é gente amiga, né mesmo? E depois, muitos anos rolaram, quasi num tem mais precisão de segredo... E o véio aqui num sabe? Seu Tunico nas estranjas, o doutô senhor seu pai, que Deus o tenha, faz tempo que já foi encontrar Jesus, Nosso Senhor, que aquele num tinha dois tão bom nesse mundo... Só pode de tá no céu... É.
Uma larga pausa aconteceu aqui e, apesar dos olhares cheios de curiosa impaciência, ninguém se atreveu a cortar o silêncio. Todos mudos, esperando. Até que o velho retomou o tom manso de contador de causo.
- Ocês se alembra daquela febre que num deixava Maricota sair da cama? As criança tudo pequeno chorando pro mode num tinha quem cuidasse... eu aqui na roça a trabalhar na enxada que chuvia muito e o mato tomava conta... E a Maricota, coitada, lá largada sem se alevantar de tão fraca. Cheguei a imaginar coisa ruim, se cheguei! Mas o patrão, doutô Tonho, soube da doença da Maricota, sei lá como, e um dia se achegou aqui no sítio, vindo lá da cidade do Rio de Janeiro, sózinho pruque também com a chuva que num parava ninguém da família quiz vim, o doutô era homem de fazer essas coisa, vinha só pra atender uma precisão da gente... E foi sorte pra nóis, pois num é que sossegou a febre da mulhé, doutô Tonho deixou remédio e Maricota foi ficando logo outra e uma semana passada num carecia mais de cama... Num tô falando? O doutô curou ela, parecia mais era milagre e se fosse de meu jeito ser crente rezador, creditava na santidade do hôme. Creditava mesmo...
A pele morena crestada pelo trabalho ao ar livre, muitos anos debaixo de sol ou de chuva lidando com a plantação, com o controle do mato e com a criação dos animais - no sítio sempre teve de tudo um pouco - o corpo naturalmente musculoso, os ombros ligeiramente vergados, não muito, o que mais surpreendia os de fora era o seu belo sorriso de dentes muito brancos, ainda sem falhas. No momento em que sorria de modo franco percebia-se o belo homem que era, apesar da rudeza e falta de trato típica da gente da roça. Seus olhos evitavam encarar estranhos, mas em sua roda de amigos exprimiam firmeza ao mesmo tempo que derramavam afeto. Em sua candura e simplicidade, Zé nem atinava, mas todos ali sabiam, o quanto o patrão respeitava e estimava aquele caboclo, há tantos anos responsável pelo sítio. Opinião do Zé era sempre ouvida com respeito e atenção pelo Dr. Antônio. Aliás, não só o patrão admirava-lhe a sabedoria. Era notória a quase reverência com que os demais peões ouviam suas histórias. O problema era a parcimônia de vêzes em que o Zé se dispunha a relatá-las. No julgamento geral dos que o cercavam, era por demais discreto. No entanto, quando a turma pressentia disposição favorável no velho Zé, todos o cercavam ávidos e ansiosos pela narrativa.
- É, mas espera que já falo, hôme di Deus, conto direitim o causo como o causo foi.
Olhou um a um os que o rodeavam, como que avaliando o impacto que iria provocar. Pigarreou, limpando a garganta e começou a falar sem pressa.
- Quando a mulhé ficou boa e vi que tava curada, resolvi ir na cidade agradecer o doutô. Num pudia chegar de mão abanando e arresolvemos dá a Genoveva pro patrão. Isso, ela mesma, a melhor galinha que nóis já teve, a melhor parideira de ovo e a melhor chocadeira... Nóis tinha estima pela danada e só mesmo coisa tão séria e importante pra tomar decisão assim... mas doutô Tonho merecia. E, do jeito que eram, ele e mais seu Tonico, seu filho, íam ficar contentes com o presente, ora se íam!
- É... A gente sabia que o doutô andava aperreado com Tonico, menino bom, mas ainda com pouco sizo, querendo mudar o mundo – vixe que besteira – sem entendê que o jeito e a ordem das coisa é assim desde que o mundo é mundo, ora se! Ficava zangado quando o véio aqui tentava dar conselho pro mode dele num ter mais discussão com o doutô, pois tudo é como é... vai mudá não. Mas seu Tonico era tinhoso que ele só, volta e meia tava lá falando alto, no convencimento dos outro pro que achava direito.
Zé aproveitou uma segunda-feira que a comadre foi visitá-los, pediu-lhe para ficar por lá até sua volta do Rio de Janeiro, tão longe, ía ter que tomar trem e dois ônibus. Afinal, Maricota estava ainda fraca e os meninos davam trabalho, fora os cuidados com a casa e o terreiro.
Mas, como ía levar Genoveva? Genú, como a família do Zé a chamava na intimidade, só era igual às demais galinhas na aparência: penas brancas, pescoço feio, rugoso e avermelhado. Seus movimentos obedeciam à coreografia própria às da sua espécie: andar apressadinho, cabeça pra frente e pra trás, quando não estava virada pro chão num eterno cisca-cisca, tudo em ritmo rápido e ansioso... Até aí, nada diferente, portanto. Mas Genú, além de ser uma excelente poedeira – já havia livrado a família da fome em tempos difíceis – tinha um sexto sentido que a fazia entrar em pandemônio quando pressentia perigo: cocoricós berrados, asas abertas, vôos rasos e penas soltando pra todo lado, um fuzuê daqueles!... O interessante é que o estardalhaço da Genú não visava simplemente aos estranhos que se aproximavam do sítio, como faziam os gansos e os cachorros, que cumpriam tal papel. Não, o que a Genoveva parecia querer comunicar era algo mais sutil e, ao mesmo tempo, mais eloquente. Foi aos poucos que Zé e Maricota se deram conta que a galinha só dava espetáculo raramente, mas sempre na presença de determinadas pessoas tidas como encrenqueiras, invejosas ou, como dizia o Zé, gente du mal. Em pelo menos uma ocasião a Genú deu o seu alarme sem que nem Zé, nem Maricota atinassem a razão: foi com o filho do Tião, rapaz novo ainda, simpático e bem falante, que andara por lá perguntando se havia algum serviço que ele pudesse fazer. O Zé ficou de falar com o patrão, quando ele aparecesse, o doutor demorou a vir e, tempos depois, quando já estava quase esquecendo o assunto, não é que souberam que o dito filho do Tião tinha se empregado numa fazenda perto e fugira roubando a caminhonete do capataz... Vixe Maria! Tem que levar a sério os avisos da Genoveva... E não é que tem? Tem mesmo. De qualquer maneira, só os do sítio é que sabiam dessa qualidade da galinha. Era assunto comentado com alguma reserva, só entre eles, os que trabalhavam ali, mais o patrão e o patrãozinho. O Tonico ria muito e gostava de escutar as histórias, enquanto o Doutor Antonio ouvia, ficava sério e não emitia opinião. O doutor dizia que já vivera e ouvira muita coisa nessa vida para desacreditar de intuições, alertas ou presságios, mesmo que sinalizados por uma ave. E ainda mais, no caso, por uma galinha tão especial como a Genú.
É verdade, a Genú era mesmo especialíssima, tanto que o Zé acabou por resolver levá-la disfarçada dentro de uma cesta, confiando que, veja só, não seria traído por comportamento indiscreto de sua parte. Falou diretamente com a própria, explicando-lhe que só podia entrar no ônibus da cidade se ela ficasse bem quieta, sem que a notassem ali. E mesmo o Zé, que não era dado a crendices, confiou no entendimento da bicha. Pois não é que ela se acomodou no fundo da cesta e lá ficou, com a cabeça enterrada, mais parecendo um monte de penas brancas?! A Maricota ainda manifestou alguma dúvida, será que não era melhor esperarem o doutô ou seu Tonico aparecerem por lá para darem o presente? Será que essa viagem com a Genú ía dar certo? O Zé, claro, considerou suspeitas tais indagações, levou em conta a relutância da mulher, previsível e natural, em se desfazer de galinha tão amiga. E depois, para que o presente tenha valor de verdade tem que ser levado até onde está o presenteado, não tem graça esperar o contrário.
E lá se foram, Zé e mais Genú, para a cidade grande, para o Rio de Janeiro. Primeiro pegaram o ônibus até Arcozelo, em seguida tomaram o trem, quatro horas depois saltaram na Estação da Leopoldina, centro do Rio. O barulho do trânsito, o movimento das pessoas, todas correndo, todas com muita pressa, mas o Zé caminhando em frente, sem desgrudar de sua cesta, em meio à multidão.
Antes de pegar o outro ônibus, sentou-se em um banco de praça ali perto, precisava descansar um pouco. Lembrou do farnel que a Maricota lhe dera na última hora, coitada, preocupada que ele não passasse fome. Genú, comportadíssima, arriscou colocar a cabeça um pouco para fora, a olhar de soslaio o movimento, mas logo afundou novamente em seu novelo de penas.
Estava guardando o resto que não havia comido, quando quase deu um pulo de alegria. Não era Seu Tonico, cruzes, que estava bem ali do outro lado da rua? Nossa... Sorte grande, ele vai poder explicar melhor como Zé faz para chegar à Gávea. Agarra-se à cesta e apressa-se a alcançar Tonico. Atrapalha-se na hora de atravessar a rua, tem que esperar o sinal verde, são muitos carros todos correndo sem perceber que agora é o Zé que também tem pressa... Mas ninguém dá passagem e ele espera. Da sua calçada observa em frente e percebe que Tonico não está sózinho, são dois rapazes e uma moça entrando com ele naquela agência bancária da esquina. Percebe também, um tanto atrás, um outro homem que parece prestar atenção no grupo, sem no entanto se aproximar. O sinal abriu, mas Zé refreia a corrida e, coração apertado sem saber bem por que, reprime o chamado e vai caminhando na direção do prédio onde já entrou Tonico e seu grupo. Ultrapassa o homem que parecia segui-los, disfarçando sua apreensão, quer alcançar logo Tonico e avisá-lo que corre perigo...
- Bobagem, perigo nenhum Seu Zé, não se avexe, não, é só muito povo que passa, até parece uns aperreando outro... Mas, né nada disso não, deixe de inventar coisa, seu véio maluco... Pensava ele, tentando se acalmar e se esforçando por botar a cabeça no lugar. Vencendo o susto, entrou no Banco, decidido a chamar Tonico e falar-lhe naturalmente sobre o presente que trouxera. Naquela época, idos dos anos sessenta, os bancos não possuiam porta giratória, ainda bem, porque senão o Zé ía se atrapalhar com sua cesta. Aliás, ele reparara, Tonico também carregava uma sacola grande, que engraçado.

Mal entrou, deu de cara com Tonico que, instantâneamente lívido, reconheceu-o. Levantou o braço, como que fazendo sinal aos demais e foi caminhando em sua direção. Antes porém que o alcançasse, aconteceu. E isso o Zé não sabe explicar como foi. Quando se deu conta, a Genú tinha se soltado do fundo da cesta, voava loucamente por entre uns e outros, gritando um co-co-ri-co-có mais esganiçado que nunca, as pessoas sem conseguir entender o que estava a provocar aquele tumulto todo, um dos guardas do banco gritou mais alto uma ordem de prisão à galinha (?). Um verdadeiro escarcéu. A única coisa que Zé registrou, em meio à chuva de penas brancas e ao alarido geral, foi a Genú, em mais um vôo razante, acabando por derrubar o tal homem que desconfiara estar seguindo o grupo... É nesse exato momento que Tonico, sem vacilar, arrastou-o para fora e, já na rua, andando em ritmo só ligeiramente apressado, empurrou-o para dentro de um carro, o motorista já a postos, deu ordem de partida imediata. Zé e Tonico mudos, caras de susto. Seus amigos, ainda muito pálidos, estavam reduzidos a imensos pontos de interrogação, olhares fixos em Tonico, evitando falar. Quem diabo era aquele matuto que o companheiro colocara entre eles? O que significava a ação sustada com o fuzuê de uma galinha (uma galinha?!?) em polvorosa no meio da agência?

- É, o véio aqui achou que tava vendo coisa, mas hoje sei certo, num é invenção não, o Seu Tonico tinha uma arma escundida naquela sacola que arreparei no meio da confusão. Inté, acho sim, que os que tava com ele também tinha... Disse num precisá, mas Tonico insistiu em levá a minha pessoa prum taxi, me deu dinheiro pro móde voltá na mesma hora, que inda nem bem tinha chegado... Ele só carecia saber... Quando ficou só aqui com o véio, um minutinho só, quando voltou a voz minha e a dele... Só carecia saber se aquela galinha se tratava da Genú. E, depois que disse que sim, não era outra senão a própria, num deu pra explicar mais nada, ele tava num aperreio só e me pediu pra não falá nem com o doutô Tonho, nem com meu cumpade e nem com a mulhé. E, inté hoje, num contei não...
Ninguém mais soube da galinha Genoveva, nem mesmo se ela acabou sendo presa... Mas, bastante tempo mais tarde, em noite de lua cheia, quando papos intermináveis costumavam acontecer debaixo da mangueira e em volta das estórias do caseiro Zé, Doutor Tonho chegou a insinuar que a Genú foi decisiva no salvar Tonico... O velho Zé, batendo a cabeça a concordar, murmurou entre dentes:
- Ora se foi!
Maria Luiza de Carvalho
mluiza_carvalho@yahoo.com.br

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Erro na previsão de tempo para o coração!...


Hoje amanheci dividida. Como o tempo aqui no RJ, oscilo pro sol, oscilo pra chuva e depois me pergunto: qual foi mesmo minha previsão de tempo para hoje? Ah! Me lembrei. Como hoje é sábado, era pra amanhecer com uma luz radiante temperatura morna, mesmo sendo verão, e coração esfuziante, como se estivesse apaixonada. Também, tinha previsto meu despertar junto com o alvorecer. Respiraria fundo e caminharia na praia com os pés descalços, permitindo que as ondas os lambessem sensualmente, de vez em quando...
E eu apenas sorriria, os ofereceria novamente e as encorajaria a repetir a operação, suspirando e gemendo, iniciando um jogo de sedução, humm!.... Em seguida, ofereceria meus tornozelos, pernas, joelhos, coxas, e deixaria que uma grande onda me lambesse por inteira, de baixo para cima e me levasse ao clímax da sensação com gosto salgado. Permitiria que sua imensa língua, doce e molhada, invadisse todas as minhas grutas e segredos me deixando ruborizada, ofegante e com os nervos túmidos e prontos.
O mar tem sido o meu melhor amante... Silencioso, insinuante, imprevisível e arrebatador, na maré baixa, ele me conforta, me acaricia e me lambe suavemente . Na maré alta, me arrebata, me açoita, me puxa em suas correntezas, me arremessa, me afoga e me invade no fundo do meu âmago. Mas hoje, me acordei dividida a minha previsão falhou. Pela manhã, choveu em meus olhos, e uma nuvem negra nublou o meu coração. Senti falta dele e me agarrei às suas recordações. Caiu uma tempestade forte dentro de mim que me ameaçou como uma chuva de verão. Me alagou, me inundou, mas acabou em pouco tempo. Fui resgatada por um raio quente do sol de verão que me escancarou o sorriso e ofuscou meus olhos com luz ; esquentou m'alma, e como um arco-íris que promete um tesouro em sua ponta, instalou-se novamente a esperança em meu coração.
Estou correndo para ti novamente, oh! mar...

Marisa Queiroz
Rio, 01/03/08

domingo, 6 de setembro de 2009

Magia


As palavras escorriam, senti a mágica presente em seu processo de criação.
O espanto toma conta de mim. A mágica, um espectro responsável por tudo que ela faz e tece através de sua narrativa. Mágica. O que é mágica? Pergunta fantasma, martela em mim. A noite avança e nossa conversa rola, caudaloso rio.
Será que a magia percebida vem das uvas malbec do vinho de textura firme, púrpura e rústica ? O jantar frugal e a sobremesa me fizeram viajar no tempo.
Parto levando a inquietude daquela visão. Novo dia. Minha alma vaga em busca do não resolvido. Mulher destemida busca mudanças constantes pelo horror do mesmo. Observo a cena por vários ângulos e ao me deparar com dois acontecimentos históricos encontro a ligação. Cai o muro de Berlim e alguém escreve: “os momentos que revelam a descoberta de um mundo novo são mágicos, a surpresa é autêntica e a arte só poderia resultar vigorosa”. Os timorenses conseguem se libertar dos indonésios. Alguém escreve que para resgatar a independência precisam aprender a escrever a própria história com a emoção sentida. Estabeleço liga entre mágica e emoção. Deslizo pelo desejo de liberdade, pela falta de medo do desconhecido, pelo espanto, pelo desejo de viver a vida na dor e no amor. A mágica está na coragem de viver o novo, de quebrar barreiras e muros. A mágica está na emoção dos pequenos gestos, na alegria de ser e apenas se deixar viver. Mágica da criação.


Sonia Viana
30/08/09

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O SOM DA ALMA

Os amigos, às vezes, me mandam verdadeiros presentes por e-mail sem saber que, alguns deles, me tocam tanto. Recentemente, recebi um vídeo do youtube, cuja música de fundo é "Sonata ao Luar", de Beethoven. Emocionada, escutei-a praticamente uma tarde inteira e, todas as vezes, sentia-me sendo transportada para o âmago de meu ser, num lugar onde parece que há uma espécie de portal de comunicação com o universo. "Deve ser a alma", pensei, "deve ser neste ponto que a gente se enconta com a origem de tudo". Um lugar que me deu uma saudade danada...lugar estranho, porém conhecido, cujo sentimento é o de estar prestes a voltar para casa.

Mas, só minh'alma deve saber que lugar é esse. Sim, é como se existisse uma memória, não neuronal, mas uma memória inconsciente; um inconsciente cósmico que nos leva às origens. Todo meu corpo vibrou junto com o universo como se cada partícula atômica fosse uma só, vibrando em unicidade O universo deve vibrar como uma músiva e Beethoven deve ter chegado perto de traduzir essa vibração no piano para a humanidade. Senti muita paz. O universo deve ser assim, pensei, cheio de paz, vibrando ao mesmo rítmo do som de "Sonata so Luar". Quando eu morrrer, quero ir nessa vibração ao encontro do universo, minha origem, minha Mãe. Não terei medo, irei muito feliz, me reintegrarei como energia cósmica, como luz ....

Diz a história que Beethoven andava muito deprimido por causa da surdez e pela perda de um grande amigo que era como se fosse seu pai. Até pensou em se suicidar. Mas conheceu uma moça cega, que lhe disse certa vez: “Eu daria tudo para enxergar uma noite de luar”. O compositor ficou tão emocionado que, olhando para o céu prateado de luar, e lembrando da moça cega, como a se perguntar o por quê da vida, compôs uma das músicas mais belas da humanidade: “Sonata ao Luar” . A vontade de viver voltou-lhe tão renovada que anos depois compôs o incomparável "Hino à Alegria", da 9ª sinfonia.

Escutando Sonata ao luar fiz, sem saber, o mesmo questionamento de Beethoven, durante as três notas que se repetem , insistentemente, no tema principal do 1º movimento da Sonata, e que parecem perguntar: "Por quê"?
"Por quê"? Por que vivemos, sofremos, amamos, erramos, nos angustiamos? Por que? Por que? Por que? ...
"Sonata ao Luar" é o som da alma.
A resposta deve estar lá.

Marisa Queiroz
agosto/09

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Cliquem aqui para apreciar o vídeo "Sonata ao Luar" de Beethoven
http://www.youtube.com/watch

terça-feira, 11 de agosto de 2009

E foram tantos beijos...


Ele entrou, de mansinho, debaixo de minhas cobertas e eu esperei que me tomasse pelos braços e enroscasse suas pernas em torno de minhas ancas. Procurei não abrir os olhos, pois ele não suportava que eu o fizesse. Não dei um sussurro e nem um gemido, pois sabia que ele se afastaria. Hoje ele estava mais carinhoso do que sempre e eu, mais desejosa do que nunca. Podia me comunicar com ele, mas só em pensamento. Não, só em delírio e onírico. Se eu usasse a razão, ele se desmancharia no ar. Meu mundo não existia sem ele que era a razão de meu viver. Mas só no meu viver delirante e onírico. Durante o dia, eu não tinha a menor idéia de quem ele era e nem lembrava dele. Mas a noite, ao adormecer, meu coração se acelerava e eu sabia que nós éramos como duas almas gêmeas. Nessa noite, ele veio e fizemos muito amor. E foram tantos beijos... Como eu me lembro disso? Ué, quando escrevo eu lembro de meus delírios.


Marisa Queiroz
agosto/2009

domingo, 26 de julho de 2009

Interiores


Precisava se afastar nem que fosse por um instante da proximidade física dos filhos e do marido. Levantou-se, o corpo um pouco menos gracioso do que de costume, deixou sem querer que o braço derrubasse a taça de vinho sobre a mesa. Um filete vermelho e cristalino escorreu para o chão, brilhando como minúsculas ilhas de luz.
Andou, o passo incerto, como se o vinho agora tivesse tomado conta do seu rumo. À janela a noite lá fora colou no seu peito uma dor. Mas a noite, pobre noite, não tinha nada a ver com essa história. Ela então permitiu que o ar cristalino tocasse seu rosto esquecendo o apelo das estrelas que a convidavam a voar. Súbito olhou sua sala onde tudo parecia harmonioso.
O que se passa querida? A voz do marido vem de longe como se ela não mais a reconhecesse. Mas os fios grisalhos que descem pela nuca dele tecem o desejo de trazê-la de volta à intimidade dos anos bem vividos. Reconhece no gesto da filha à mesa, ao levar a mão ao rosto como se afastasse um pensamento triste, o seu próprio gesto, o de sua mãe, o da avó na fotografia.
Ela sentiu então que coisa estranha era a vida.

Maria Helena Mossé

terça-feira, 21 de julho de 2009

LAÇOS DE AMOR...

Tive um grande amigo (o maior de todos!) que dizia:"A amizade é aquele estado de amor que não termina na cama".
Acho engraçado porque, mesmo ele tendo sido meu maior amigo, com ele fui para cama. E não me arrependi. Casei com ele, tive duas filhas e fomos muito felizes.

Mas, voltando ao "estado de amor que não termina na cama", tenho muitos amigos (com os quais não fui para cama) que foram e são estrelas em meu caminho; bússolas em minha vida. Sempre achei importante ter um bom amigo, alguém que fosse meu confidente (ele ou ela) que eu pudesse me espelhar e para quem eu me sentisse importante.

No curso primário, ainda menina, tive tres grandes amigas que perduraram pela adolescência até o início da fase adullta: Ideny, Virgínia e Silvia. Depois que vim para o Rio de Janeiro, fui, aos poucos, perdendo o contato com elas e, hoje em dia, mal sei onde estão. Fiz outros grandes amigos, obviamente, mas essas tres amigas marcaram de forma especial a minha vida numa fase em que ainda estava me descobrindo.

Com a primeira, fui uma verdadeira moleque. Corríamos pelas ruas até à praia, subíamos na goiabeira da vizinha e enchíamos os bolsos de goiaba, soltávamos pipa e ríamos até quase desmaiar por nossas conversas tão bobas e engraçadas. Quando eu estava triste, ela, que tinha lindos olhos castanhos de mel, me dizia quase chorando: Fica triste, não, Marisa, senão eu choro! E eu sabia que ela chorava mesmo, e muito sentida. Para não ver minha amiga chorando, eu dizia: Olha, já passou! Vamos brincar? E depois do abraço de "grandes amigas", saíamos correndo pra goiabeira do vizinho e cantávamos como duas andorinhas. E quando apontava na esquina aquele gatinho que ambas gostávamos, enchíamos cada uma um saco com goiabas madurinhas para ofertá-lo como prova de amor. Entregávamos e saíamos dalí sorrindo, correndo, radiantes de felicidade. Acho que foi a única amiga que não me importei em dividir um homem. Com ela eu aprendi que amiga é a irmã que a gente escolhe. Ideny, que saudades! Eu era tão feliz e não sabia...

Aos 11 anos, conheci uma menina que era toda feminina e coquete. Seu nome era Virgínia e nos tornamos grandes amigas. Fiquei encantada com ela, principalmente quando, ao 12 anos ela passou a usar sutiã. Virgínia não tinha nada de moleque, era uma verdadeira dama, em todos os sentidos. Além disso, era sensata, inteligente e muito madura para sua idade. Na escola, era a primeira da turma e muito popular entre os meninos. E mais! Dançava balé, coisa muito rara entre as meninas de minha cidade natal, pois os pais, normalmente, tinham muitos filhos e não tinham dinheiro para pagar atividades extra-classe. Mas, Virgínia, dançava balé e isso contribuía para fazer dela uma musa. Era toda elegante em sua forma de andar e tinha um corpo todo harmonioso por causa da dança. Eu era apaixonada pela Virgínia . Fiz dela minha "ídola" e passei a tomá-la como modelo para meu desabrochar feminino. Foi com ela que aprendi a fazer charme e seduzir os meninos. Foi ela quem me apresentou os batons e sombras que comprávamos em tubinhos de várias cores e foi ela quem me ensinou a cantar e dançar igual a Wanderléia.

Virgínia também me ensinou algo muito valioso que não pude jamais esquecer: a demosntração de carinho e amor pelos pais. Não que eu não amasse muito os meus pais, mas em criança, fui daquele tipo... um tanto arisca. Passei a beijar meus pais na saída e na chegada em casa. No início ele me olharam surpresos e chegaram a cogitar que eu estivesse doente, depois passaram a gostar e retribuíam os abraços e beijos. Também, com ela, passei a frequentar as missas dominicais. Virgínia foi o tipo de garota que eu chamaria, hoje em dia, de "certinha" e aquele tipo de amizade que todos os pais desejariam pra suas filhas.

Concomitante à Virgínia, tive uma grande amiga chamada Silvia. Esta era uma menina que eu definiria como "resoluta". Imensos olhos verdes e cabelos de espiga de milho, louros, era uma verdadeira artista. Magra , alta e sorridente, parecia saber, exatamente, o que queria, desde cedo. O que eu gostava nela era seu jeito de ser desprendido e muito criativa. Parecia sempre de bem com a vida. Eu sabia que seus pais eram pobres e viviam com muita dificuldade, mas a Silvia, tinha alma de rainha e nunca se queixou de nada. O sorriso estampado no rosto, era sua marca registrada. Podia-se dizer que era uma menina feliz. Seu pai era um designer, numa época que ninguém dava valor, e um daqueles artistas plásticos comuns da Sé de Olinda, Pernambuco. Silvia tinha muita habilidade para a estética e o desenho e, como consequência, virou arquiteta. O que aprendi com ela? A ter personalidade, a me impor e ser eu mesma..

Silvia não era do tipo que fazia julgamentos ou tinha acessos de moralismo. Tinha uma inteligência vívida e transcendental. Quando lhe impunham alguma ordem ou preconceito, ela simplesmente, questionava e perguntava: "por que?". Dava de ombros e seguia livre como um passarinho.

Hoje li em algum lugar sobre a importância dos amigos e dos relacionamentos. É se relacionando e, principalmente tendo amigos, que a gente tem um feedback sobre nós mesmos. Com esse feedback que os amigos dão, a gente tem a chance de dar um passo a frente e evoluir. Não sei qual foi a importancia que tive pra essas três amigas na infância e adolescência, mas algo me diz que eu também, com meus jeitinho meio ingênuo, moleque e criança de ser, tive uma influência muito grande e positiva sobre elas, pois, sempre estiveram perto de mim naquela época e sempre dispostas a me ajudarem. Hoje eu sei que também me amaram muito. Escrevi em algum lugar que laços de amor são aqueles estreitos e firmes e estes, nem a distância, tempo ou a morte vai afrouxar. Obrigada Ideny, Virgínia e Silvia por terem contribuído com meu crescimento e minha evolução. Sem vocês, quem eu seria hoje? Não sei....
FELIZ DIA DO AMIGO!!

Marisa Queiroz
Rio, 21/07/09

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Provocação


O amor é o elixir que move o mundo. Quando não é o amor é a raiva, o ódio, a frustração. Mas, ser movido pelo amor é bem mais interessante, as conseqüências são de produção, de expansão. Os outros sentimentos levam quase sempre à desintegração, à destruição.
Leio o cronista da segunda-feira e fico estimulada pela atitude dele diante da questão que o aluno lhe coloca.
Seria ele limitado à crônica de duas notas só?
Certamente, movido pelo amor, pela sensibilidade ele dá, ao aluno da boina supermaneira, uma lição de como podemos, consultando os arquivos de nossa interioridade, passear pelos sentimentos que vão nos trazendo as idéias das coisas que lemos, dos filmes que nos tocaram, das perguntas que nos são feitas.
O cronista foi se revelando, mostrando o que é deslizar na escrita fazendo uma crônica de muitas notas: obsessão, felicidade trazida pelo amor apaixonado, pelo amor à cidade, pelo amor à vida, pelo amor às calçadas. Adorei a ode às calçadas.
Vou tentar guardar em meu coração tamanha poesia “calçadas servem para passear a felicidade, dar uma pernada nos dolores da existência e botar para caminhar a vida”. Parece letra de samba bom. Joaquim Santos considera a calçada “maravilha urbana que a bandidagem otária e os prefeitos desapaixonados roubaram dos cariocas”. A música continua.
É bom saber que não estamos sozinhos, que há quem pense e sinta próximo a nós.
Interação, provocação dando origem a uma crônica poética, dando um peteleco no meu desejo de escrever, de interagir.
Como diz o autor “cada um lê como quer, vê as bruxas que puder”....
Pego carona em seu escrito e deslizo pela alameda da alegria de poder brincar com as palavras, poder fixar idéias românticas provocadas pela poesia da crônica de Joaquim e pelo brilho da cidade que, apesar do descaso das autoridades, não perde seus encantos, seus cantos e magia.

Segunda, 22/11/04
Sonia

domingo, 5 de julho de 2009

O Poeta e o Mar

É doce amar no mar
Nas ondas salgadas me entregar
Deixar-me levar pela poesia
Nobre timoneira aventureira!....

É doce chorar no mar
Com lágrimas de sal marinho
Sentir saudades dele
Meu ardente poeta, leão marinho!...

É doce viver no mar
Lugar de sal doce
De doce sonhar

De águas vivas e salgadas
Do aconchego de Iemanjá
Mãe dos poetas que almejam
A estrela do a-Mar

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Escrever e Sentir

Quando a memória tragar você de mim
As marcas do meu sentir
Estarão impressas nas folhas que escrevi por aí
Ao ler poderei lembrar e novamente sentir
Escrever me salva
Do meu corpo falível

Escrever salva você pra mim

Sonia Viana

terça-feira, 23 de junho de 2009

Emoção


Hoje estou mínima
sinto o não-nominável
amanhã certamente encontrarei palavras
o sentido virá
ganhará destino
certos fatos assombram
o tempo envelhece os fatos
a alma se aquieta
volto ao tamanho que sou


Sonia Viana

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Vagando em plena solidão...

O que é esse aperto na alma?
Que nome tem esse pranto?
Meu ser tem sede de calma
E só encontro desencanto.

Navego num rio de incertezas
Minha bússula é a escuridão
O que será de meu destino?
Onde estará minha luz?

Magoa-me saber que tenho asas
Mas tenho quilos de chumbo nos pés
Lembranças vagas me oprimem
Oh! onde estão as chaves desses grilhões?

Sozinha sufoco a dor
Pois nem tu me enxergas
Sou alma sem irmã
Vagando em plena solidão!

Marisa Queiroz

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Noite

Deitado, costas à porta, Rick esconde-se entre os lençóis. Rapaz novo, bonito, grandes mãos, olhos de águia. Deitado costas à porta, treme de pavor. Medos infantis alimentados por fantasmas milenares; rola na cama banhado de suor. Espreita sombras, perscruta ruídos, certeiro do perigo.
Pavor, noite de terror insone que sombreia seus olhos azuis, deixando sobre os ombros um geriátrico cansaço.
Apaga e acende a luz na vã esperança de afugentar a fantasmagoria reinante. No reino das trevas tudo pode acontecer. Ninguém aparece para socorrê-lo, ninguém aparece para resgatá-lo. Ele pensa - somente eu na luta.
Fantasia-se, então , de Don Quixote, saca sua lança, sobe em seu alazão e lança-se sobre as sombras.
Arruma a cadeira, vira o abajur, fecha a gaveta. Fim da batalha, joga-se na cama e dorme o sono dos heróis.

Suely Marques
04/2008

sexta-feira, 12 de junho de 2009

O GATO


Antes de acender o cigarro, depois de abrir o maço e cuidadosamente escolher um, como se fosse talvez o último, a mulher passeia a mão nos pêlos do gato. Deitado no sofá ele muda de posição, oferecendo seu corpo para mais carícias. A mulher está em pé, ao lado do abajur. Cigarro aceso entre os dedos, ela solta a fumaça em círculos contra o fundo escuro da parede. O gato volta seus olhos amarelos em direção à imagem da mulher de encontro à luz. Ofuscado, suas pupilas transformam-se em riscos, finos como cabelo. Depois, Irene se afasta. O gato a segue, o rabo em S, ao sabor dos passos da mulher que caminha em direção ao quarto. Na mesa de cabeceira o vidro do remédio para dormir está com a tampa aberta. Irene não se lembra se tomou a dose de costume, ou quantas doses tomou. Sente-se confusa, a cabeça esfumaçada. Ultimamente tem adicionado ao remédio uma dose de uísque, o bastante para potencializar a droga. Você é louca, diria Fernando. Mas ele já não está mais aqui. Com ele foi-se a censura e algumas outras coisas a mais, a sensação de segurança por exemplo, ou de ter uma companhia à noite, além do gato. Foram-se também o telefone eternamente ocupado, o zapear infernal dos canais de TV e foram-se, principalmente, as camisas para lavar e passar. Dalva, a empregada, não reclama mais. Só de ter que limpar o pêlo do gato no sofá.
No quarto Irene afasta a colcha da cama, volta-se para o animal e com um movimento leve do pé, o empurra para fora do quarto.

O que se passa com ela? Irene sempre me deixou dormir na sua cama. Até o dia em que um tal de Fernando ocupou o meu lugar. Como se não bastasse trouxe com ele um poodle chamado Mike que teve a ousadia de querer ocupar meu cesto. A minha vida virou um inferno. Enraivecido eu eriçava meu pêlo deixando claro quem mandava nesta casa. Finalmente venci, faz pouco tempo que o tal Fernando sumiu levando pela mão seu cão ridículo.
Voltei a minha vida tranquila e aos lençois de Irene, perfumados de lavanda.
Irene. Eu estava nos seus braços quando abri meus olhos pela primeira vez. Fixei instantaneamente a ternura no seu olhar. À minha volta, luzes e sombras me diziam que existiam outras formas além daquele rosto. Depois, num átimo, passei a controlar cada milímetro deste espaço que viria a ser o meu mundo. Nele aprendi a caminhar sem tocar em nada, sabendo precisamente por onde ir e o que fazer. Com o passar do tempo minha experiência se ampliou. Sei tudo o que se passa com Irene, cada mínima variação do seu estado de espírito, do leve levantar de uma sobrancelha ao retesamento do seu corpo. Sei o que significa a leveza ou o peso das suas mãos sobre meu pêlo. Agucei meus sentidos ao ponto de perceber presenças nesta casa que ninguém vê. Sou um gato para quem passado e futuro nada significam. Sou um gato para quem a vida está imersa no caldo de minhas visões, dos ruídos e cheiros que definem este cenário, de movimentos que me fazem saltar para o inesperado quando por um instante adivinho a exaltação da liberdade.
Com Dalva, a empregada, eu reconheço minhas dificuldades. Quando chega de manhã, ela me encontra no sofá. Espanador na mão, sai pra lá gato, começa o caos. Primeiro, para o meu horror, ela muda os objetos de lugar. Num frenesi rítmico ela se move. Sons pontiagudos cortam o ar levantando a poeira que faz arder meus olhos. Sinto-me perdido. Corro para o meu cesto onde finjo que durmo. Mais tarde, com voz arrependida, vem cá meu gato, ela me chama com uma tigela de leite.
Ao cair da tarde espero que Irene volte à casa. Depois do jantar gosto de brincar com ela enquanto está no computador. Sei que a faço feliz. Quando Irene pousa os óculos na mesa é hora de ir para a cama.
No quarto, quando uma luz fraca escorre pela parede, percebo que o sol está para nascer. Em silêncio, deslizo da cama para não acordar Irene. É hora de ir para a varanda esperar pelo canto dos passarinhos. Fascinado, ouço. É quando lanço o meu grito em busca de um eco. Se existe outro mundo além do meu, não sei.

Foi a empregada quem chegou primeiro e viu que o gato não estava no sofá. Estranhou a porta fechada do quarto da patroa. Irene ainda respirava de mansinho quando os homens de branco vieram buscá-la. No chão o vidro vazio de remédios estava ao lado do copo onde o resto de uísque escondia a marca de geléia barata. Os vizinhos foram muitos gentis e perguntaram o que fazer com o gato.
Dalva o encontrou na varanda. O vento batia na contramão do seu pêlo trazendo no ar um cheiro de lavanda.

Maria Helena Mossé

DIVAGANDO COM MEUS BOTÕES


Tem dias que o coração clama por algo novo, algo que nos tire da mesmice. Algo que nos faça sonhar, matutar e falar com os botões. Acordei com um fraco raio de sol adentrando em minha janela e pensei em dar uma bela caminhada na orla do mar.

Afastei as cortinas, e deparei-me com as misteriosa brumas de outono da cidade. Árvores com folhas gotejadas pelo orvalho da madrugada, cheiro de terra molhada e um tímido sol escondido por entre as grossas nuvens escuras. Minha alma foi surpreendida por um acalento inconfessável e eu me disse sem nenhum pudor: Mas, que caminhada, que nada! O dia pede um chá quente, um edredon, um laptop no colo e uma licença permissiva para sonhar.

Olhei novamente para a nostálgica paisagem e me surpreendi com uma estranha criatura cinza e cheia de patas, grudada como um imã de geladeira no vidro de minha janela. Com o que parecia aquele inseto? Uma mistura de aranha com besouro e barata de praia. Teria um nome específico? Não sei, mas cuidei para que os vidros estivessem bem fechados para que ele não pudesse entrar.

Me questionei depois se eu deveria ser mais ecológica ou tratar mais a minha entomofobia. Porém, a vida nos ensina que a sós, podemos ser politicamente incorretos, ser a "rainha malvada" ao invés de "princesinha". Odiei aquele inseto grudado no meio da paisagem de minha janela e senti vontade de dar-lhe uma "maçã envenenada". Porém resolvi perdoá-lo pois, não fosse por ele, mexendo com minhas vísceras, não teria tido a oportunidade de fazer uma reflexão sobre minhas próprias sujeiras decantadas.

Gosto de escrever e quando o faço, apaixono-me por mim mesma. Um ato puramente narcísico. Se Narciso soubesse escrever, ele certamente não teria se afogado com sua própria imagem no lago. Teria se conservado apaixonado por si e seduzido o mundo com sua literatura. Ai, como eu amo os poetas! Mas, só os verdadeiros poetas, aqueles que, como diz Fernando Pessoa, mentem tão completamente que fingem que é dor o que deveras sentem. Gosto também de escrever poesias e de deixar meu coração me iludir com as dores, paixões e solidões que ele mente que sente. Chego a acreditar tanto neste meu fingido coração que, por vezes, sofro e choro como uma poetisa sentida.

Gosto de escutar, liberar e escrever as loucas palavras vãs que vêm de meu coração - pândego sentimental, um bobo sem razão, que me faz experimentar as mais insensatas emoções. Escrevo crônicas, poesias e contos e, neste embalo da alma é que canto e me encontro.

O inseto já se foi. As brumas esconderam mais ainda o sol e agora uma fina chuva cai. Eu, aqui em meu quarto, continuo matutando com minhas letras, dissecando minha alma e divagando com meus botões.

Rj, junho de 2009
Marisa Queiroz

sábado, 6 de junho de 2009

O CASARÃO DAS MIL JANELAS

Um cheiro de café e fubá entra pela fresta da porta. É a preta Isaura que tira do fogão, aceso a lenha, um bolo, uma rosca, um pão. É ela, também, que entra e escancara as janelas inundando o quarto de luz.
Seis horas; nós, rapazes sonolentos ainda embriagados pela cachaça madrigueira, resmungamos e gritamos. Mas o aroma matutino nos faz calar a algazarra e correr à mesa. Madeira bruta, tombada na mata, que talhada a faca preenche a parte nobre do salão.
Janelas abertas, uma, duas, vinte, permitindo que o sol tamborile sobre a louça alva que, convidativa, nos espera. A boca amarga toca o quente do leite, o sal da manteiga. A luz que entra faz arder os olhos. Uma folha da janela se fecha.
Estamos prontos, espingarda nas costas somos bravos caçadores. Cão trilheiro ladra anunciando a marcha. Ao longe, um olhar sobre o casarão e suas mil janelas. O vento fustiga as cortinas, o grito da preta velha ecoa no ar. Nós caçadores seguimos em busca de aventuras.
Passa a manhã, sol a pino, regressamos famintos. Longe, o casarão se torna branco, muito branco no contraste com o céu de um imaculado azul. Na cintura o cinto pesa, são perdizes e codornas, abatidas por tiros certeiros meio à revoada no chapadão.
Mesa na varanda, cheiro de carne. Porco assado mergulhado na banha. Cachaça na garrafa, tilintar de copos, janelas que batem. É o vento que sopra sonolento lembrando que elas, as janelas, estão lá, azuis contra o branco calcário das paredes.
Preguiçosos, nos recostamos. Rapadura na boca adocica a fumaça, que entra via palha seca do cigarro caboclo. Fumo de rolo, velho contador de estórias e casos. Riso gaiato, anéis de fumaça que se desprendem no ar. Ao longe, o som da roda do engenho que trabalha incessante, fazendo correr a garapa da cana.
Horas mornas e sombrias, a tarde cai dando um tom alaranjado às paredes. São grilos e sapos, vaga-lumes e mariposas que, num compasso toante, compõem uma melodia que nenhuma orquestra ousou imitar.
É o banho no açude gelado, é a toalha que, cheirando a sabão de cinzas, nos recebe num afago. É a barriga que ronca em comunicação certeira à panela que, fumegante, prepara a grossa sopa de entulho.
As janelas uma a uma vão sendo fechadas, como olhos que procuram descanso. Oculto pelo crepúsculo está o casarão. No mato o grito da coruja, o uivo do guará desperta a fantasmagoria reinante.
Tinha quinze, vinte, vinte e cinco anos, não lembro. Apenas surpreso me vejo diante do casarão; mil janelas, mil aventuras.
O sol, mais uma vez tamborila na mesa. Olho, é ela, uma janela aberta, escancarada, permitindo que ainda trinta, quarenta ou cinqüenta anos depois, me lembre que a vida está aí como um velho casarão cheio de janelas a serem abertas...

Setembro 2001

Menina Maísa: o que ela quer?


O que é que uma criança de seis ou sete anos de idade quer?
Proteção, amor dos pais e brincar, certo? E se essa criança for um prodígio? Deve ser tratada diferente? Depende do ambiente onde ela vive e dos adultos que a acompanham.

O que é uma criança prodígio?
Entende-se que a criança prodígio é aquela especialmente muito talentosa para a sua idade em alguma área. Ela costuma revelar talento a um nível similar ao de um adulto e surpreende pela capacidade brilhante de resolução de problemas. Os prodígios são crianças excepcionalmente precoces em algum tipo de habilidade. Nascemos com um potencial interno que se desenvolverá de acordo com a qualidade, a quantidade e o momento em que esse cérebro começa a trabalhar. Algumas pessoas acreditam que com condições favoráveis e estimulação adequada, qualquer criança pode atingir algum nível de sobredotação, talento ou prodígio. Partem do princípio que um ser humano normal dispõe, ao nascer, de estruturas (biológicas e psicológicas) que o tornam susceptível de ser elevado ao nível de sobredotação através da influência do meio, o que não é verdade.

Todas as crianças nascem com mais ou menos potencialidades, mas algumas, por razões genéticas, estão mais bem preparadas para superarem a maioria das outras, mesmo quando a estas se proporcionem as mesmas condições e os mesmos estímulos. É importante estimular a mente infantil desde cedo. Porém, é preciso tomar cuidado com os excessos, que ao invés de beneficiar o desenvolvimento intelectual, vai bloquear suas funções, pois nem sempre a predisposição biológica e psicológica da criança está voltada pra a área que está sendo estimulada. Os pais que se preocupam demasiadamente em estimular seus filhos acabam transmitindo uma enorme ansiedade e gerando, às vezes, frustrações desnecessárias nas crianças.

Maísa, menina que trabalha na SBT, parece sim, uma criança prodígio, pois encanta a todos com sua inteligência e capacidade de verbalização e interação com o público, com apenas seis anos. Seu cérebro parece um centro complexo de sinapses velozes e relampejantes. É difícil não gostar de assistí-la. Não obstante, essa pequena notável revela algo da ordem, não da inteligência e intelecto, mas da ordem das emoções, que a fragiliza e pede socorro.

Há uma ação do MP para retirá-la do programa de TV do Silvio Santos, por ela ter, por duas vezes, chorado copiosamente em público. Numa das vezes, ela explica em off ao Silvio Santos que tem medo de máscaras e ele, assim mesmo, chama um mascarado no palco. Maísa grita e chora desesperadamente sendo retirada do programa. De outra vez, SS a repreende em público e ela, dizendo sentir-se magoada, chora novamente, desta vez se acidentando e batendo com a cabeça numa das câmeras. Nas duas vezes, tanto o SS quanto o público, se mostram absolutamente insensíveis. Riem e aplaudem o sádico espetáculo. Maísa procura o apoio da mãe que lhe dá um copo de água dizendo que vai passar e manda-a de volta ao palco.

Perplexa com as imagens daqueles vídeos, me perguntei: “O que está acontecendo com o SS, os pais da Maísa e com o público? Não percebem que ela é apenas uma menininha de seis anos de idade? Que ela não entende certos tipos de brincadeira e ironia dos adultos?” A bem da verdade, a pequena estava sendo atirada aos leões da arena televisiva e o público, inconsciente, aplaudia e gritava por mais. Fiquei a pensar o porquê daquela reação impensada do SS e daquelas pessoas na platéia.

É certo que crianças prodígio, muitas vezes, confundem o adulto, pois sua inteligência e capacidade de interação é espantosa e se assemelha a um adulto. Porém, a diferença é que sua mentalidade e suas emoções são de uma criança. Maísa tem medo de máscaras. Podia não ter, mas tem. É bem compreensível nas crianças de sua idade. Ainda está afetivamente envolvida com fábulas e histórias infantis.

Os contos de fadas, como sabemos, são muito úteis na infância para ajudá-las a elaborar sentimentos de amor e ódio. Porém, infelizmente, muitos adultos usam os personagens de contos de fadas de forma distorcida, apenas para assustar as crianças. E, ao invés de lhes propiciarem o entendimento de seus próprios sentimentos, as confundem fazendo-as sentirem pavor e se bloquearem afetivamente.

Maísa está caminhando para uma fase que nós, psicanalistas, chamamos de latência – fase onde a criança recalca seus desejos edipianos e se prepara para a inserção social e cultural através da educacão. Essa transição tem que ser vivida com muita serenidade pela criança e pelos pais para que ela não desenvolva nenhuma fobia, paranóia ou outros traumas. A menina Maísa, por ser precoce e celebridade muito cedo, deve estar também com muito medo do peso da fama. Seu descontrole emocional frente a uma máscara é bastante indicativo de que algo a aflige, algo que talvez nem ela mesmo saiba o que é. Mas certamente esse algo tem a ver com a fase que ela está passando.

Os pais e adultos nessa hora têm a função de acalmá-la e protegê-la. Não obstante, o público e o próprio SS a tratou como “a chorona”, “ a medrosa” e outros termos agressivos, como se ela fosse um adulto fazendo cena. A mãe, que estava nos bastidores, também não a entendeu e a tratou como se fosse uma adulta ou uma criança manhosa, mandando-a de volta ao palco.

O inquérito do Ministério Público Federal está apurando quais as medidas legais cabíveis que podem ser adotadas em relação ao desrespeito de princípios constitucionais e legais sobre a produção de programas de rádio e televisão quanto à exploração indevida de imagem e violação de direitos da criança. Sim, isto deveria ser feito para todas as crianças que, disfarçadamente, são exploradas como força de trabalho e avaliadas as condições de suas saúdes física e psicológica.

Certos "adultos" deveriam saber que não se deve fazer medo a uma criança, muito menos em público e em grupo. E deveriam saber também que não se deve rir e debochar dos sentimentos de uma criança, nunca.
Enfim, o que uma criança prodígio de seis anos quer?
Exatamente o que qualquer outra criança de sua idade deseja: amor e proteção dos pais e espaço para brincar e se desenvolver. O melhor lugar para Maísa é em sua casa, com os pais, e na escola onde pode brincar com crianças de sua idade e ter um desenvolvimento emocional saudável, de acordo com suas necessidades.

RJ, maio de 2009
Marisa Queiroz

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Quando é que nossa ficha cai?...


Já observei que o mundo em sua alta velocidade só para e faz um minuto de silêncio diante de uma tragédia ou uma catástrofe. Parece que é, justamente nestes momentos, que nossa ficha cai e nos perguntamos: "Pra que tudo isso? Por que corro tanto assim? Por que vivo tão estressada com coisas tão pequenas? Por que não paro tudo vou fazer só o que quero e ficar mais tempo com as pessoas que amo?

É como se houvesse um instante de lucidez total e, por alguns minutos a gente apreende a vida do jeito que ela é.Com o desaparecimento trágigo do boeing 447 da Air France, com quase 250 pessoas a bordo, na noite de domingo passado, vi este fenômeno acontecer mais uma vez. Comoção geral entre as pessoas nas ruas, escolas e lares, e aquele sentimento aflorado nas expressões de cada um.

Ouvi do vendedor de frango de minha rua (sempre muito sábio) a seguinte reflexão: "Pois é, Dona, a gente fica aqui contando os trocados, querendo coisas que a gente não pode ter, desejando ser o que não é e a gente não nota que a vida é só uma e que pode ser interrompida a qualquer momento. Por que a gente não torna a vida mais simples e valoriza só o que tem que ser valorizado, que é o amor e a felicidade?"

E ouvi também de um motorista de taxi:"Sabe , Dona, eu nunca mais vou correr e fazer loucuras no trânsito com meu taxi pra satisfazer capricho de passageiro. Imagine a senhora, que ontem (domingo) eu peguei um casal de americanos, muito nervosos, que me disseram que tinham que pegar aquele vôo 447 à 19h no aeroporto Tom Jobim, e que estavam atrasados. Me deixaram muito tensos porque a mulher gritava, 'corra motorista, eu morro se não pegar este avião!'. Sim, eu fiz um esforço e quase morri neste trânsito aqui para que eles não perdessem o vôo. E olha aí o que aconteceu. Isso me fez repensar sobre minha vida. Vou me aposentar e ficar mais tempo com minha mulher, filhos e netos."

Esses e outros exemplos nos fazem pensar que a catátrofe é muitas vezes uma espécie de "tapa na cara" do ser humano. Pois é aí que ele pára, nem que seja por algumas dias ou horas, e pensa sobre a real essência da vida. É quando ele se despoja de toda pequenês criada pelos meios de comunicação nutridos por uma imensa vontade de que a vida seja diferente e cada vez mais ilusória. Onde o que tem valor é o comprável, o descartável, os modelos estéticos impostos, a competição e a soberba. Onde a alma do mundo ganha cifrões e lucros imorais.

Mas, quando a ficha cai, o ser humano se engrandece e vê o mundo de cima com os valores que realmente existem. Daí, se torna forte, sábio e mais humanizado entendendo a vida do jeito que ela é. Porém, infelizmente, para a maioria, essa lucidez da alma é passageira. O ser humano adora viver no mundo da ilusão, desde a idade das cavernas. Logo, logo, a lucidez volta a ser escanteada pelas aparências do mundo andywarholdiano, e ele só volta a pensar ou a "cair em si", quem sabe, numa próxima catástrofe, ou talvez quando chegar a sua própria tragédia.

Rio, junho de 2009
Marisa Queiroz

segunda-feira, 1 de junho de 2009

SOBRE BRUXAS E FADAS - UMA CRÔNICA CARIOCA

O dia estava farrusquento assim como seu humor. Manhã sem sol, mormaço pesado e ameaçando chover. Ela precisava chegar logo em Botafogo e naquela hora da manhã levaria uma meia hora. No mínimo. Mas precisava chegar antes. Estava atrasada. Dirigiu preocupada por toda a Jardim Botânico e descendo a Voluntários, torcia para encontrar vaga no estacionamento da vila da Real Grandeza. Nem sempre conseguia. Aí, com certeza, seriam mais quase quinze minutos de atraso. Ia preocupada com a consulta médica da véspera, com a receita nova de baba de moça que precisava testar, com a voz esganiçada da vendedora que insistia em dizer que aquele produto não se fabricava mais. E e o nariz dela? Igual, só o da amiga da avó, que uma vez quando criança, ficou rindo a tarde inteira, com as irmãs, daquele gigantesco nariz. Distraída, ao ver a loja de produtos para bichos de penas e pelos, lembrou dos cachorrinhos que nasceram. Precisava avisar ao vizinho que queria comprar mais de um, que faltavam só poucos dias. E aquele homem estranho andando no meio dos carros? Será que vai assaltar alguém?
Quando chegou, um carro atrapalhava a visão da entrada. Sem pensar muito deu uma guinada rápida e entrou na frente para tentar saber se havia vaga ou não. Só então percebeu que a mulher na direção do outro carro fazia a mesma coisa, e que havia fechado o carro dela. Sem graça, orientada pelo porteiro, entrou na frente e aliviada pela hora, estacionou. Enquanto aguardava ser chamada, andando de um lado para o outro, irrompeu na sala de espera, a mulher, alta, irônica e bonita, falando alto: Aquele carro preto é seu? É, você me desculpa… Mas antes que conseguisse dizer mais alguma palavra a outra despejou sem mais nem menos: Seu carro é mesmo lindo! E está muito bem conservado. A pintura é original? Você deve cuidar muito bem dele! Você não quer me vender seu carro? Assustada com tamanha efusão para um carro econômico, pequeno e sem grandes atrativos a não ser cuidados normais e diários, ela respondeu que não. Não estava interessada em vendê-lo.
Intrigada com a conversa da mulher, novamente se perdeu em pensamentos e lembranças, enquanto dirigia por Botafogo até o Cosme Velho. Listou tudo o que precisava lembrar de fazer. Tantas coisas diferentes, fáceis de esquecer. Um aniversário para parabenizar, uma conta para pagar, um email para responder e no fim do dia, não tinha jeito, sempre faltava alguma coisa. Encontrou a mãe. Iam almoçar na cidade, e fazer compras de Natal. Mas, mal conseguiu sair do portão. Na calçada em frente precisou fazer uma manobra e não viu a mureta que atrapalhava seu caminho. Bateu. Na hora lembrou-se da mulher. Mas, que nada! Não ia ficar ali preocupada. Ela é que era distraída mesmo. Essas coisas não existem. São frutos da nossa imaginação. Deus é bom e só a Ele devemos temer, resgatou das lições que recebeu na escola católica. E, com um frio passando pela espinha, sabe-se lá, resolveu rezar baixinho. Sempre é bom se proteger.
Na semana seguinte, na mesma sala de espera, com o carro batido estacionado em frente, novamente aparece a mulher que vai entrando eufórica: Oi, Você bateu seu carro? O que houve? Seu carro maravilhoso? Agora não vai mais poder vender? Com outro frio na espinha, mas sem perder a pose, ela nem pestanejou. Olhou séria para a outra e disse: Batido? Meu carro? Claro que não! - Mas não é seu carro que está ali fora, amassado? Não!! Eu nunca bati e não sei do que você está falando.
Virou as costas e saiu rapidamente sem permitir esticar mais nem um minuto aquela conversa. Dirigiu aflita. Não conseguia se concentrar no trânsito. Continuou em direção a Copacabana pelo escuro e sujo Túnel Velho. Só a visão da praia no final da Siqueira Campos conseguiu lhe dar um pouco de paz. Resolveu parar para caminhar um pouco. Precisava respirar ar puro e se liberar de todo e qualquer possível mau olhado. Driblou meninos de rua e guardadores de carro, atravessou as pistas da Atlântica e caminhou embevecida, ainda abalada com a conversa daquela manhã. Senhoras com suas acompanhantes, mães com suas crianças sujas de areia, baldes e pás, atletas compenetrados, todos passavam pra lá e pra cá. Resolveu sentar-se e aproveitar uma agua de coco. O quiosque, daqueles antigos, estava vazio a não ser por uma mulher que lia. A mulher lhe sorriu. Arriscou um sorriso em resposta ainda sem saber se deveria. Logo entabulou-se uma conversa. No começo cautelosa, aos poucos mais à vontade. Como era bonita a cidade e como era ao mesmo tempo maltratada. Malquista pelos seus moradores. E pelos seus governantes. Conversa típica de quem não se conhece. Era uma linda mulher. Alta, olhos azuis contrastando com a pele castanha. Perguntou de repente se poderia ajudá-la, só teria que ouvi-la, precisava ensaiar para uma apresentação. Claro que não, respondeu curiosa, mas ainda amedrontada pela experiencia daquela manhã. A estranha então levantou-se e sem cerimônia, tendo por palco a praia de Copacabana, como quem tem uma grande intimidade, declamou, para ela e só para ela, um dos mais bonitos poemas de Carlos Drumond de Andrade. Novo arrepio na espinha, mas esse lhe aqueceu a alma. O Rio tem mesmo de todas as coisas.
Junho de 2008

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Tempo

Dia desses me vi frente a frente com o futuro, personificado por um passado glorioso e um presente nebuloso.
O tempo tem dessas coisas, traz em seu bojo, todos os dias, todas as noites, um átimo de segundo, uma hora inteira.
Ele, implacável, insiste em marcar, rasurar ou arranhar a ilusão de eternidade. Vai mostrando na pele, nos músculos, no poder da visão que ele passa, que ele não para.
Vez ou outra avisa – estou aqui, estou ali, bem ao alcance de qualquer um. Feliz daquele que o percebe e vive, seja correndo, palmeando, rindo ou chorando, mas vive este inexorável.
Toco suas mãos, beijo seu rosto, sinto no lábio a secura da pele. Miro os olhos na procura do viço, na busca do outrora. Encontro o tempo, com ele a sagacidade dos que souberam vivê-lo.
Admirada vejo o futuro de cada um, o meu mais precisamente.
A mão insegura tateia meu braço buscando apoio. O sorriso marca iluminando o que resta de contorno.
Viajo no azul do olhar e esbarro no passado conhecido. Plena me alegro, todo velho porta a criança que um dia foi.
O tempo passa, mas não apaga, feliz daquele que o reconhece e vive.

Suely Marques
abril de 2009

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Efeitos da Lua cheia

SÓ PODE SER MAGIA DA NOITE OU ENCANTO DA CIDADE. Só pode ser magia da noite ou encanto da cidade. Sexta-feira, hora do rush, rua Jardim Botânico, paro no sinal e percebo que o motorista do ônibus ao lado estava tentando falar comigo. Abaixo-me para vê-lo e ele me oferece pipoca. Agradeço sorrindo e sinto uma certa alegria com aquela situação que me pareceu singela. Olho e observo com atenção. Homem simpático, sorriso largo, pele cor de ébano, parecendo ter uns quarenta anos e, ainda, me oferecendo pipoca. O trânsito evolui e ele faz sinal para eu passar na sua frente. Obedeço e o carro vai deslizando pelo asfalto recém refeito. Sete horas. Noite com sensação de festa no ar. Temperatura amena. Lua gritando poesia. Eu me deixando envolver, arquivando em mim todo esse clima. Quatrocentos metros a diante nova parada e mais uma vez o ônibus ao meu lado. O motorista dá um ligeiro toque de buzina, percebo. Ele outra vez chamando. Repito os movimentos: me abaixo e olho. Não decifro o que ele diz. Sinalizo que não compreendendo e, na repetição, ouço claramente o pedido do número do meu celular. Mais uma vez sorrindo, respondo brejeira: “não tenho telefone”. Foi tudo tão delicado que pensei estar vivendo uma época antiga onde havia espaço para paqueras e brincadeiras. Época em que retenção de trânsito em vez de causar tensão produzia inspiração. Pequenos gestos, pequenos chistes como este produzem energia positiva que transforma a irritação causada pelos impedimentos da vida em energia de fruição. Depois disso a retenção do trânsito se desfez como num passe de mágica. E eu fiquei vaidosa imaginando que ainda existem pessoas com ternura e doçura suficiente para brincar, nos fazer sorrir e nos deixar com uma agradável sensação de que a vida vale a pena.
Sonia Viana

Cenas insólitas de Copacabana

Copacabana é, realmente, um micro universo do Brasil. É neste bairro kitsch, onde tudo é meio extravagante, glamouroso, divertido e debochado, que tudo acontece. Está sempre no top das modernidades culturais, que se espalham com certo glamour pelo bairro, assim como também no top das cenas mais chocantes e insólitas protagonizadas pelo povo que lá freqüenta. São a classe rica, classe média, a classe artística e os favelados que disputam aquela beleza estonteante da praia, ilhas, morros, Cristo Redentor, Pão de Açúcar, etc .

A praia, ruas e avenidas são palco para os diversos personagens que lá se apresentam. Das peruas, patricinhas e tchutchucas aos mendigos, prostitutos(as) e loucos de plantão. Isso sem levar em conta a quantidade enorme de turistas e visitantes estrangeiros e de outros estados do Brasil.

Costumo caminhar na praia de Copacabana e este exercício tem me inspirado ótimos temas para crônicas. Recentemente presenciei uma cena chocante e insólita. Sentei-me num quiosque no calçadão para tomar uma água de coco e eis que, de repente, uma mendiga aproximou-se de minha mesa e com um jeito de “dona do pedaço” falou: Licença, madame, sou aqui da área! E foi colocando uns bagulhos seus que carregava, em cima da mesa.

Fiquei quieta, e nem respondi, esperando que, pela falta de atenção, ela fosse logo embora. Mas, qual foi minha surpresa, quando ela começou a tirar a roupa e, diante dos olhos de todos, pegou os guardanapos da mesa, pegou também minha garrafinha de água, e começou a fazer uma higiene íntima com muita propriedade. Chocada, saí de fininho e fui me alojar numa outra mesa. A mendiga, no entanto, continuou lá fazendo sua higiene íntima, chocando a quem passava. O pior é que jogava os guardanapos sujos em cima da mesa.

Chamei o dono do quiosque e falei: Você não vai fazer nada? Ao que ele respondeu: Fazer o quê, madame? Ela é agressiva quando a gente fala com ela. Tou de mãos e pés atados! Ainda chocada, falei que ele devia então, após ela ir embora, desinfetar aquela mesa e cadeiras. Não sei se ele fez, mas saí dali sem acreditar no que eu tinha visto.

Aqui em Copacabana, especialmente aos domingos, acontecem coisas muito insólitas e grotescas. Há um tempo atrás, na época que eu e uns amigos ensaiávamos na bateria de uma escola de samba, antes do carnaval, uma outra mendiga resolver sentar comodamente debaixo de um coqueiro, bem em frente onde o grupo ensaiava. Não sei por que cargas d’água, essa mendiga resolveu tirar as calcinhas e ficar naquela "posição ginecológica" que só nós mulheres sabemos o quanto é constrangedor. Foi um constrangimento geral, e tiveram que chamar o corpo de bombeiros retirar aquela dama que ali posava sensualmente.

A despeito dos grupos de poesias que se afloram cada vez mais no bairro, dos grupos de música pop e erudita, dos shows pirotécnicos das noites de reveillon, a “Princesinha do Mar”, tão cantada pelos poetas e amantes, tem seu lado insólito e pervertido. Copacabana: ame-a ou deixe-a! 

Marisa Queiroz



Rio, abril de 2009
Marisa Queiroz

terça-feira, 28 de abril de 2009

O GUARDIÃO DO CASTELO



O movimento na casa começou diferente. Meus pais acordaram um pouco mais tarde que o normal, e já “arrumavam as tralhas”, como costuma dizer minha mãe. Todo sábado é assim. Acho que eles não gostam de ficar em casa aos sábados. Sempre vamos a um lugar diferente, – fazenda da minha avó, ou casa da minha tia na praia. Quando não saímos da cidade, vamos visitar lugares novos por perto.– Bom, pra mim que só tenho nove anos, quase tudo é novo mesmo, mas acho que até pra eles alguns desses lugares são novos também. A conversa é sempre mais ou menos essa, que eu devo conhecer e gostar de ir a museus, parques, livrarias, essas coisas.
Naquele dia disseram que íamos a um museu, mas que seria um museu diferente de todos os que eu já tinha visto. O que seria um museu diferente?
Quando chegamos achei tudo esquisito. Nada ali parecia com um museu. Parecia mais uma ruína ou uma construção inacabada. Fiquei mesmo impressionado com o lugar. Era parecido com um castelo antigo e como já disse inacabado! E morava gente lá! Na entrada tinha uma torre com um portãozão de madeira bem bonito, com brasão da família e tudo. Tinha fosso, muralhas e construções de pedra, algumas com telhado, outras sem nada, arcos antigos, mas sem nenhuma função. Acho que não tinham sido terminados ainda.
O dia estava bonito. Logo que chegamos encontramos as outras crianças. Fui brincar, mas não conseguia me desligar. Aquilo ali não podia ser museu, era completamente diferente de qualquer outro que eu já tinha ido. Mas também não podia não ser: era cheio de canhões, faróis enormes, carroças antigas, algumas estátuas; positivamente aquilo devia ser um museu. Fiquei curioso. Comecei a imaginar quem tinha construído aquele castelo, e quando? Quem tinha juntado aqueles canhões, e como?
Brinquei um pouco, joguei futebol, corri pra lá e pra cá com as outras crianças, mas continuava impressionado.
De repente, alguém nos chamou pra conhecer tudo. Foi a hora mais legal! Não ouvia bem o que dizia, afinal ele conversava mais com meu pai e eu ficava perto pra não perder nada. Fomos andando em volta de uma espécie de praça cercada de arcos mas que não tinham nada atrás. Tudo ali parecia que “um dia ia ser”. Foi como eu entendi.
Aí entramos em um corredor escuro todo feito de pedra. Não tinha nenhuma luz. Era uma galeria subterrânea que ia afundando cada vez mais. Um lugar impressionante, parecia um túnel do tempo. Pensei: Não pode ser! Estou sonhando? Ou será que dessa vez consegui entrar dentro de um livro? Como podia existir um lugar como aquele? Parecia mesmo mágica, era como se a gente não estivesse ali de verdade. Só no pensamento. Mas a mão da minha mãe segurando a minha me deixava confiante. Se eu estivesse sonhando ou dentro de um livro o fato era que minha mãe estava também, junto comigo.
Continuamos andando. No fim do corredor chegamos a um salão todo de pedra com uma mesa bem grande cheia de cadeiras pretas em volta, parecia uma mesa de banquete. Na parede, uma enorme tapeçaria e umas espadas arrumadas com mais um brasão no meio. A sala ao lado era uma biblioteca. Nosso guia puxou uns livros da estante e surgiu, de repente, uma passagem secreta. Só podia ser um sonho! Era de pedra também, bem estreita e nos levou até a masmorra, escura e sem janela. Muito gelada! Caramba, era mesmo uma masmorra. Acho que foi numa história do Ivanhoé que ouvi falar de masmorra. Não lembro bem, mas de qualquer maneira foi numa história. Ali era de verdade. Ou não? As meninas que estavam com a gente começaram a gritar quando vimos uma caveira num dos cantos da masmorra. Será que alguém um dia tinha mesmo morrido ali? Eu teria gritado também se não achasse que estava sonhando.
Depois da masmorra o grupo todo seguiu em frente descendo ainda mais naquele labirinto. Demos numa adega antiga, cheia de garrafas vazias e muita teia de aranha. A cada passo, mais eu tinha certeza que nada ali era real, mesmo quando os morcegos agitados com o movimento tiravam rasantes da gente e nos davam motivos pra gritar ainda mais. Fiquei observando uns insetos grandes e diferentes na parede da adega, me distraí e quando me dei conta não vi mais ninguém. Fiquei com muito medo e procurei ouvir de onde vinham os sons, mas só consegui distinguir um barulho de água correndo. Fui andando naquela direção, continuava escuro, e então vi um riacho subterrâneo que eu precisava atravessar. Fiquei sem saber pra que lado deveria ir. Escolhi descer o riachinho pois percebi uma luz no final. Andei bastante, morrendo de medo, procurando não esbarrar nos morcegos e nem naqueles insetos esquisitos quando escorreguei e caí. Levantei, me ajeitei e dei de cara com um velho sentado, fumando uma guimba de cigarro com um chapéu e um paletó amarrotado. Ele estava quieto, me olhando e nem sei como não senti medo dele. Perguntei: - “Quem é você? –“Eu sou o Josias”, ele me respondeu. “Trabalhei neste castelo minha vida inteira. O Dr. ainda me chama quando precisa de ajuda”. – “Mas você mora aqui, perguntei, -nesse lugar?” – “Isso mesmo, eu sou o guardião do castelo. Eu que cuido para que ninguém invada este lugar. Para que tudo continue sendo do jeito que o Dr. queria”. “Que Dr.?” perguntei meio assustado, meio curioso. “O Dr. foi quem construiu isso tudo aqui. Mas e você quem é? O que faz por aqui?” perguntou já mudando o assunto. Não sabia o que dizer. Perguntei como podia sair dali e encontrar meus pais. Disse que me mostraria o caminho desde que eu não dissesse a ninguém que o tinha encontrado. Prometi, é claro! Eu só queria voltar.
Ele me fez voltar por onde vim e quando chegasse novamente no riachinho perto da adega deveria subir, e não descer como eu havia feito, até encontrar uma escada com uma porta preta no final que eu deveria puxar e não empurrar, lembro bem desse detalhe. “E os morcegos?”, perguntei. Disse que todos iriam dormir a uma ordem dele.
E foi assim. Sem entender nada direito ainda, segui suas orientações, achei a porta, puxei e finalmente vi a luz do dia. Quando encontrei minha mãe e meu pai na varanda, sem terem se dado conta que eu não estava com as outras crianças, pensei em contar tudo, mesmo desobedecendo ao velho. Mas percebi rápido que não ia adiantar nada. Imaginei logo a reação deles: - “Como assim um velho? Como assim guardião do castelo? Meu filho, acho que você anda lendo muitos livros.”
Foi isso. Ou tudo foi um sonho, ou eu estava mesmo vivendo a história de um livro. Mas isso eu não podia explicar. O único jeito era talvez tentar convidar minha mãe pra entrar no livro comigo. Achei isso muito complicado. Deixei pra lá e fui jogar bola.

Alice Pougy
Setembro 2006

segunda-feira, 27 de abril de 2009

ENCONTRO


Acordo ao primeiro sinal de claridade e, antes mesmo de abrir os olhos, um sobressalto me sacode, a consciência subitamente alerta: é hoje o dia. Tenho um encontro com Flávio. A par da tensão, observo o leve flutuar de um fiapo que entra pela janela e baila pelo quarto em reflexos dourados. Excita-me a idéia do encontro e, ao mesmo tempo, desejo que algo impeça meu corpo de levantar da cama. Uma forte gripe talvez, quem sabe, seria um álibi perfeito. Um arrepio me percorre, enquanto o bom senso prevalece: não, óbvio, impensável não comparecer.
O registro da última vez que o vi, há trinta e quatro anos, é nítido em minha memória. Creio não haver passado uma só semana, em todo esse tempo, em que não tenha recordado aquela manhã, imersa na garoa paulista, a testemunhar o nosso abraço. Às vezes a visão tem a forma de um filme passando diante dos meus olhos, sempre a incomodar. E, por vezes, flagro-me tentando modificar o enredo daquela lembrança: se houvesse manifestado desespero, talvez ele não tivesse partido e tudo teria sido bem diferente. Inútil e fútil, que cabeça a minha, isso é passado, não se retoma. Aliás, tal tentativa de recriar o roteiro desta última cena tornou-se quase obsessiva nos primeiros tempos da separação e, confesso, começou a perseguir-me de imediato, mal tendo dobrado a esquina, nem bem sua visão me escapara.
Não pode haver passado tantos anos assim... Não pode! Momentos há em que sofro como se a cena houvesse ocorrido ontem, literalmente. Momentos há em que ela se repete seguidamente em minha cabeça. Tal como agora: uma despedida que pretende ser breve, mas que intuo definitiva. Por mais racionais que me soem seus argumentos, mais convencida fico de que eles na verdade encobrem a rejeição que envenena meu peito. Orgulhosa, não acuso a dor. Pelo contrário, balanço o rosto aquiescendo, suas razões por demais pertinentes. Mas algo insiste em me soprar a raiva de estar sendo abandonada. Flávio, sensível como sempre, percebe o que se passa em meu íntimo e não se deixa enganar pela aparente frieza com que recebo a notícia. Insiste em acarinhar-me e seu abraço é cada vez mais terno. Há uma fração de minuto em que meu corpo se deixa acolher naqueles braços, escapa-me um soluço e quase amoleço. Mas não passa de um brevíssimo momento. Logo me descolo do abraço, forço o sorriso e imponho os temas das providências objetivas e necessárias a nosso afastamento.

É incrível, agora não me ocorre qualquer desses acertos e combinações que usei para domar a emoção que me sacudia. E que desperdício, parece-me hoje, o gastar aquele último breve tempo com Flávio em minúcias mesquinhas da vida prática. Mas éramos assim mesmo: emprestávamos prioridade ao que chamávamos de questões objetivas, enquanto empurrávamos as emoções pela goela abaixo, ao final sempre muito mal digeridas. Nas oportunidades em que pude desabafar estes sentimentos, sempre ouvi, como tentativa de consolo, que teria sido impossível adivinhar que não mais o veria. Dentro de mim, contudo, sei que não é verdade: desde o primeiro momento daquela conversa tive certeza de que a despedida seria para sempre. Só não me pergunte de onde veio tal convicção. Pode-se argumentar que a realidade em volta, tão dura, impregnou-me. Sim, pode ser. Mas por que só ali, naquele episódio, fui tomada de tal clareza? É coisa que não explico, mas que aprendi, bem mais tarde, a respeitar e considerar. Na época, aos vinte anos, desqualificava intuições e as atribuía ao medo, pura e simplesmente. Na maturidade, alguns poucos episódios ensinaram-me o quanto essas certezas merecem ser levadas a sério.
Mas, enfim, urge levantar-me e ir ao encontro. Tem tempo, ainda é cedo, digo-me resistindo. Mas o que é isso agora? Por que o medo? Não estarei sozinha, certamente os amigos - aqueles que restaram - estarão todos lá. Mas os pensamentos parecem ter vida própria e torno a divagar. Sorrio com amargura ao pensar que não temo, diante dele, o estrago que os anos provocaram naquela minha figura de mocinha, que inspirava sua ternura. Não, não há o que temer. Em contrapartida, sua imagem de rapaz, congelada, me acompanha. Penso ainda, que não há como imaginar um Flávio sessentão. Simplesmente não consigo. Além disso, não é necessário. Ele está morto há trinta e quatro anos e será enterrado hoje.
A dor espeta-me e levanto finalmente da cama. Quase no mesmo instante um sentimento de vitória me invade, em paradoxo à dor que ainda me aperta o peito. Acostumada a tais ambivalências, esforço-me em concentrar os pensamentos na batalha vencida. Depois de tanto tempo, o pouco que restou de Flávio foi finalmente encontrado, escondido que estava em cova clandestina. Mas este pouco foi suficiente para provocar barulho e, como disse alguém, ajudou a desconstruir o esquecimento sobre aquele tempo de barbárie.
Mais segura de mim, por acaso volto a olhar o facho de claridade que entra da janela e percebo que a brisa suave faz ainda flutuar fiapos luminosos. Consigo aprontar-me e saio rapidamente. Ao chegar, de pronto me emociona a visão altiva e frágil de Dona Helena, a mãe de Flávio que, aos oitenta e nove anos, parece estar somente esperando enterrar o filho para poder finalmente descansar. Ao fundo, diante da urna coberta com a bandeira do Brasil, ladeada pela família, por uma pequena multidão, incluindo repórteres e inúmeros amigos, uma faixa:

PELA VIDA, PELA PAZ, TORTURA NUNCA MAIS!
À memória de Flavio de Carvalho Molina e em homenagem à sua família, que lutou uma eternidade para conseguir identificar seus restos mortais e enterrá-los dignamente.

Maria Luiza de Carvalho
mluiza_carvalho@yahoo.com.br