quinta-feira, 5 de novembro de 2009

JANELA PARA O CÉU


Acordei com um soco de angústia explodindo no peito. Novamente o pesadelo, o mesmo de sempre. Na iminência de ser descoberta como a autora de um crime que não cometi. A sensação de acuamento, o peso das evidências, tudo me deixa quase sem respirar. Embora não possa provar, sei que não sou culpada. No entanto, restam poucos minutos para que cheguem à conclusão de que sou eu a criminosa. E aí, diante de minha cara de pânico e na ausência de protestos, serei olhada e apontada como objeto de horror. Na morte do homem, não resta fuga possível, TODOS os indícios conduzem a mim. Não sei como agir diante de algo que conspira contra minha inocência. Inocência esta que, por minutos ainda mais aflitivos, suspeito não ser verdadeira.
Sento-me na cama e, bem à minha frente, a janela aberta de par em par escancara um céu limpo. Vejo minha mão que desliza pelo lençol e escuto, não o roçar do tecido, mas o farfalhar das folhas musicadas pela brisa. Nenhum ruído de trânsito na rua, nenhum grito de menino, só um galo cocoricando bem ao longe. No quadrado que me aparece emoldurado pela janela, o céu está pintado de um anil pálido, sem qualquer nuvem a manchar sua cor. Deve ser muito cedo, que horas serão? Ao invés de procurar o relógio, estico-me toda, braços e pernas na direção daquele azul e avalio como os pássaros devem gostar de voar naquele cenário.
Passo os olhos em volta e só então estranho o ambiente. Não é meu quarto. De chofre, cheia de euforia, lembro-me. Estou em um hotel e Florença está aos meus pés, é só descer o elevador. Caminharei e, mesmo sem pressa, poderei alcançar a Ponte Vecchio sem muito esforço. A angústia do pesadelo se desfaz por inteiro e agora estou entregue à grande aventura.
Há uma semana fugi da mesmice, do marido de tantos anos, das complicações rotineiras e embarquei sozinha para um sonho. Fiz questão de viver meu segredo. Um bilhete em envelope deixado junto à louça do café da manhã, já arrumada como sempre de véspera, deve ter provocado um grande rebuliço na cabeça de João e em toda a casa. Sorri, falando sozinha: paciência. Eu a tive tanta, por tantos anos! Um dia, ao acordar mais uma vez do pesadelo recorrente, deu-me um estalo e descobri que teria que fazer minha hora acontecer. Logo no dia seguinte comprei uma passagem para Roma - paga à prestação - e eis-me aqui à beira do Rio Arno, prestes a caminhar pela piú bella Firenze e, maravilha das maravilhas, a alguns passos de apreciar o David, de Michelangelo.
- Dane-se o mundo, viva o sonho!
Nesse ponto, ouço meu nome. Surpresa, volto-me na direção da voz e deparo com João de pé, ao lado da cama, me solicitando algo.
Pombas! Como então não estou em Florença ?!?
Após alguns segundos de total aturdimento, de súbito entendo. Plena de frustração, rosno qualquer resposta incompreensível e, em contraponto, o seu olhar tenta se desviar do abismo do meu rancor.


Maria Luiza de Carvalho
mluiza_carvalho@yahoo.com.br