quinta-feira, 30 de abril de 2009

Efeitos da Lua cheia

SÓ PODE SER MAGIA DA NOITE OU ENCANTO DA CIDADE. Só pode ser magia da noite ou encanto da cidade. Sexta-feira, hora do rush, rua Jardim Botânico, paro no sinal e percebo que o motorista do ônibus ao lado estava tentando falar comigo. Abaixo-me para vê-lo e ele me oferece pipoca. Agradeço sorrindo e sinto uma certa alegria com aquela situação que me pareceu singela. Olho e observo com atenção. Homem simpático, sorriso largo, pele cor de ébano, parecendo ter uns quarenta anos e, ainda, me oferecendo pipoca. O trânsito evolui e ele faz sinal para eu passar na sua frente. Obedeço e o carro vai deslizando pelo asfalto recém refeito. Sete horas. Noite com sensação de festa no ar. Temperatura amena. Lua gritando poesia. Eu me deixando envolver, arquivando em mim todo esse clima. Quatrocentos metros a diante nova parada e mais uma vez o ônibus ao meu lado. O motorista dá um ligeiro toque de buzina, percebo. Ele outra vez chamando. Repito os movimentos: me abaixo e olho. Não decifro o que ele diz. Sinalizo que não compreendendo e, na repetição, ouço claramente o pedido do número do meu celular. Mais uma vez sorrindo, respondo brejeira: “não tenho telefone”. Foi tudo tão delicado que pensei estar vivendo uma época antiga onde havia espaço para paqueras e brincadeiras. Época em que retenção de trânsito em vez de causar tensão produzia inspiração. Pequenos gestos, pequenos chistes como este produzem energia positiva que transforma a irritação causada pelos impedimentos da vida em energia de fruição. Depois disso a retenção do trânsito se desfez como num passe de mágica. E eu fiquei vaidosa imaginando que ainda existem pessoas com ternura e doçura suficiente para brincar, nos fazer sorrir e nos deixar com uma agradável sensação de que a vida vale a pena.
Sonia Viana

Cenas insólitas de Copacabana

Copacabana é, realmente, um micro universo do Brasil. É neste bairro kitsch, onde tudo é meio extravagante, glamouroso, divertido e debochado, que tudo acontece. Está sempre no top das modernidades culturais, que se espalham com certo glamour pelo bairro, assim como também no top das cenas mais chocantes e insólitas protagonizadas pelo povo que lá freqüenta. São a classe rica, classe média, a classe artística e os favelados que disputam aquela beleza estonteante da praia, ilhas, morros, Cristo Redentor, Pão de Açúcar, etc .

A praia, ruas e avenidas são palco para os diversos personagens que lá se apresentam. Das peruas, patricinhas e tchutchucas aos mendigos, prostitutos(as) e loucos de plantão. Isso sem levar em conta a quantidade enorme de turistas e visitantes estrangeiros e de outros estados do Brasil.

Costumo caminhar na praia de Copacabana e este exercício tem me inspirado ótimos temas para crônicas. Recentemente presenciei uma cena chocante e insólita. Sentei-me num quiosque no calçadão para tomar uma água de coco e eis que, de repente, uma mendiga aproximou-se de minha mesa e com um jeito de “dona do pedaço” falou: Licença, madame, sou aqui da área! E foi colocando uns bagulhos seus que carregava, em cima da mesa.

Fiquei quieta, e nem respondi, esperando que, pela falta de atenção, ela fosse logo embora. Mas, qual foi minha surpresa, quando ela começou a tirar a roupa e, diante dos olhos de todos, pegou os guardanapos da mesa, pegou também minha garrafinha de água, e começou a fazer uma higiene íntima com muita propriedade. Chocada, saí de fininho e fui me alojar numa outra mesa. A mendiga, no entanto, continuou lá fazendo sua higiene íntima, chocando a quem passava. O pior é que jogava os guardanapos sujos em cima da mesa.

Chamei o dono do quiosque e falei: Você não vai fazer nada? Ao que ele respondeu: Fazer o quê, madame? Ela é agressiva quando a gente fala com ela. Tou de mãos e pés atados! Ainda chocada, falei que ele devia então, após ela ir embora, desinfetar aquela mesa e cadeiras. Não sei se ele fez, mas saí dali sem acreditar no que eu tinha visto.

Aqui em Copacabana, especialmente aos domingos, acontecem coisas muito insólitas e grotescas. Há um tempo atrás, na época que eu e uns amigos ensaiávamos na bateria de uma escola de samba, antes do carnaval, uma outra mendiga resolver sentar comodamente debaixo de um coqueiro, bem em frente onde o grupo ensaiava. Não sei por que cargas d’água, essa mendiga resolveu tirar as calcinhas e ficar naquela "posição ginecológica" que só nós mulheres sabemos o quanto é constrangedor. Foi um constrangimento geral, e tiveram que chamar o corpo de bombeiros retirar aquela dama que ali posava sensualmente.

A despeito dos grupos de poesias que se afloram cada vez mais no bairro, dos grupos de música pop e erudita, dos shows pirotécnicos das noites de reveillon, a “Princesinha do Mar”, tão cantada pelos poetas e amantes, tem seu lado insólito e pervertido. Copacabana: ame-a ou deixe-a! 

Marisa Queiroz



Rio, abril de 2009
Marisa Queiroz

terça-feira, 28 de abril de 2009

O GUARDIÃO DO CASTELO



O movimento na casa começou diferente. Meus pais acordaram um pouco mais tarde que o normal, e já “arrumavam as tralhas”, como costuma dizer minha mãe. Todo sábado é assim. Acho que eles não gostam de ficar em casa aos sábados. Sempre vamos a um lugar diferente, – fazenda da minha avó, ou casa da minha tia na praia. Quando não saímos da cidade, vamos visitar lugares novos por perto.– Bom, pra mim que só tenho nove anos, quase tudo é novo mesmo, mas acho que até pra eles alguns desses lugares são novos também. A conversa é sempre mais ou menos essa, que eu devo conhecer e gostar de ir a museus, parques, livrarias, essas coisas.
Naquele dia disseram que íamos a um museu, mas que seria um museu diferente de todos os que eu já tinha visto. O que seria um museu diferente?
Quando chegamos achei tudo esquisito. Nada ali parecia com um museu. Parecia mais uma ruína ou uma construção inacabada. Fiquei mesmo impressionado com o lugar. Era parecido com um castelo antigo e como já disse inacabado! E morava gente lá! Na entrada tinha uma torre com um portãozão de madeira bem bonito, com brasão da família e tudo. Tinha fosso, muralhas e construções de pedra, algumas com telhado, outras sem nada, arcos antigos, mas sem nenhuma função. Acho que não tinham sido terminados ainda.
O dia estava bonito. Logo que chegamos encontramos as outras crianças. Fui brincar, mas não conseguia me desligar. Aquilo ali não podia ser museu, era completamente diferente de qualquer outro que eu já tinha ido. Mas também não podia não ser: era cheio de canhões, faróis enormes, carroças antigas, algumas estátuas; positivamente aquilo devia ser um museu. Fiquei curioso. Comecei a imaginar quem tinha construído aquele castelo, e quando? Quem tinha juntado aqueles canhões, e como?
Brinquei um pouco, joguei futebol, corri pra lá e pra cá com as outras crianças, mas continuava impressionado.
De repente, alguém nos chamou pra conhecer tudo. Foi a hora mais legal! Não ouvia bem o que dizia, afinal ele conversava mais com meu pai e eu ficava perto pra não perder nada. Fomos andando em volta de uma espécie de praça cercada de arcos mas que não tinham nada atrás. Tudo ali parecia que “um dia ia ser”. Foi como eu entendi.
Aí entramos em um corredor escuro todo feito de pedra. Não tinha nenhuma luz. Era uma galeria subterrânea que ia afundando cada vez mais. Um lugar impressionante, parecia um túnel do tempo. Pensei: Não pode ser! Estou sonhando? Ou será que dessa vez consegui entrar dentro de um livro? Como podia existir um lugar como aquele? Parecia mesmo mágica, era como se a gente não estivesse ali de verdade. Só no pensamento. Mas a mão da minha mãe segurando a minha me deixava confiante. Se eu estivesse sonhando ou dentro de um livro o fato era que minha mãe estava também, junto comigo.
Continuamos andando. No fim do corredor chegamos a um salão todo de pedra com uma mesa bem grande cheia de cadeiras pretas em volta, parecia uma mesa de banquete. Na parede, uma enorme tapeçaria e umas espadas arrumadas com mais um brasão no meio. A sala ao lado era uma biblioteca. Nosso guia puxou uns livros da estante e surgiu, de repente, uma passagem secreta. Só podia ser um sonho! Era de pedra também, bem estreita e nos levou até a masmorra, escura e sem janela. Muito gelada! Caramba, era mesmo uma masmorra. Acho que foi numa história do Ivanhoé que ouvi falar de masmorra. Não lembro bem, mas de qualquer maneira foi numa história. Ali era de verdade. Ou não? As meninas que estavam com a gente começaram a gritar quando vimos uma caveira num dos cantos da masmorra. Será que alguém um dia tinha mesmo morrido ali? Eu teria gritado também se não achasse que estava sonhando.
Depois da masmorra o grupo todo seguiu em frente descendo ainda mais naquele labirinto. Demos numa adega antiga, cheia de garrafas vazias e muita teia de aranha. A cada passo, mais eu tinha certeza que nada ali era real, mesmo quando os morcegos agitados com o movimento tiravam rasantes da gente e nos davam motivos pra gritar ainda mais. Fiquei observando uns insetos grandes e diferentes na parede da adega, me distraí e quando me dei conta não vi mais ninguém. Fiquei com muito medo e procurei ouvir de onde vinham os sons, mas só consegui distinguir um barulho de água correndo. Fui andando naquela direção, continuava escuro, e então vi um riacho subterrâneo que eu precisava atravessar. Fiquei sem saber pra que lado deveria ir. Escolhi descer o riachinho pois percebi uma luz no final. Andei bastante, morrendo de medo, procurando não esbarrar nos morcegos e nem naqueles insetos esquisitos quando escorreguei e caí. Levantei, me ajeitei e dei de cara com um velho sentado, fumando uma guimba de cigarro com um chapéu e um paletó amarrotado. Ele estava quieto, me olhando e nem sei como não senti medo dele. Perguntei: - “Quem é você? –“Eu sou o Josias”, ele me respondeu. “Trabalhei neste castelo minha vida inteira. O Dr. ainda me chama quando precisa de ajuda”. – “Mas você mora aqui, perguntei, -nesse lugar?” – “Isso mesmo, eu sou o guardião do castelo. Eu que cuido para que ninguém invada este lugar. Para que tudo continue sendo do jeito que o Dr. queria”. “Que Dr.?” perguntei meio assustado, meio curioso. “O Dr. foi quem construiu isso tudo aqui. Mas e você quem é? O que faz por aqui?” perguntou já mudando o assunto. Não sabia o que dizer. Perguntei como podia sair dali e encontrar meus pais. Disse que me mostraria o caminho desde que eu não dissesse a ninguém que o tinha encontrado. Prometi, é claro! Eu só queria voltar.
Ele me fez voltar por onde vim e quando chegasse novamente no riachinho perto da adega deveria subir, e não descer como eu havia feito, até encontrar uma escada com uma porta preta no final que eu deveria puxar e não empurrar, lembro bem desse detalhe. “E os morcegos?”, perguntei. Disse que todos iriam dormir a uma ordem dele.
E foi assim. Sem entender nada direito ainda, segui suas orientações, achei a porta, puxei e finalmente vi a luz do dia. Quando encontrei minha mãe e meu pai na varanda, sem terem se dado conta que eu não estava com as outras crianças, pensei em contar tudo, mesmo desobedecendo ao velho. Mas percebi rápido que não ia adiantar nada. Imaginei logo a reação deles: - “Como assim um velho? Como assim guardião do castelo? Meu filho, acho que você anda lendo muitos livros.”
Foi isso. Ou tudo foi um sonho, ou eu estava mesmo vivendo a história de um livro. Mas isso eu não podia explicar. O único jeito era talvez tentar convidar minha mãe pra entrar no livro comigo. Achei isso muito complicado. Deixei pra lá e fui jogar bola.

Alice Pougy
Setembro 2006

segunda-feira, 27 de abril de 2009

ENCONTRO


Acordo ao primeiro sinal de claridade e, antes mesmo de abrir os olhos, um sobressalto me sacode, a consciência subitamente alerta: é hoje o dia. Tenho um encontro com Flávio. A par da tensão, observo o leve flutuar de um fiapo que entra pela janela e baila pelo quarto em reflexos dourados. Excita-me a idéia do encontro e, ao mesmo tempo, desejo que algo impeça meu corpo de levantar da cama. Uma forte gripe talvez, quem sabe, seria um álibi perfeito. Um arrepio me percorre, enquanto o bom senso prevalece: não, óbvio, impensável não comparecer.
O registro da última vez que o vi, há trinta e quatro anos, é nítido em minha memória. Creio não haver passado uma só semana, em todo esse tempo, em que não tenha recordado aquela manhã, imersa na garoa paulista, a testemunhar o nosso abraço. Às vezes a visão tem a forma de um filme passando diante dos meus olhos, sempre a incomodar. E, por vezes, flagro-me tentando modificar o enredo daquela lembrança: se houvesse manifestado desespero, talvez ele não tivesse partido e tudo teria sido bem diferente. Inútil e fútil, que cabeça a minha, isso é passado, não se retoma. Aliás, tal tentativa de recriar o roteiro desta última cena tornou-se quase obsessiva nos primeiros tempos da separação e, confesso, começou a perseguir-me de imediato, mal tendo dobrado a esquina, nem bem sua visão me escapara.
Não pode haver passado tantos anos assim... Não pode! Momentos há em que sofro como se a cena houvesse ocorrido ontem, literalmente. Momentos há em que ela se repete seguidamente em minha cabeça. Tal como agora: uma despedida que pretende ser breve, mas que intuo definitiva. Por mais racionais que me soem seus argumentos, mais convencida fico de que eles na verdade encobrem a rejeição que envenena meu peito. Orgulhosa, não acuso a dor. Pelo contrário, balanço o rosto aquiescendo, suas razões por demais pertinentes. Mas algo insiste em me soprar a raiva de estar sendo abandonada. Flávio, sensível como sempre, percebe o que se passa em meu íntimo e não se deixa enganar pela aparente frieza com que recebo a notícia. Insiste em acarinhar-me e seu abraço é cada vez mais terno. Há uma fração de minuto em que meu corpo se deixa acolher naqueles braços, escapa-me um soluço e quase amoleço. Mas não passa de um brevíssimo momento. Logo me descolo do abraço, forço o sorriso e imponho os temas das providências objetivas e necessárias a nosso afastamento.

É incrível, agora não me ocorre qualquer desses acertos e combinações que usei para domar a emoção que me sacudia. E que desperdício, parece-me hoje, o gastar aquele último breve tempo com Flávio em minúcias mesquinhas da vida prática. Mas éramos assim mesmo: emprestávamos prioridade ao que chamávamos de questões objetivas, enquanto empurrávamos as emoções pela goela abaixo, ao final sempre muito mal digeridas. Nas oportunidades em que pude desabafar estes sentimentos, sempre ouvi, como tentativa de consolo, que teria sido impossível adivinhar que não mais o veria. Dentro de mim, contudo, sei que não é verdade: desde o primeiro momento daquela conversa tive certeza de que a despedida seria para sempre. Só não me pergunte de onde veio tal convicção. Pode-se argumentar que a realidade em volta, tão dura, impregnou-me. Sim, pode ser. Mas por que só ali, naquele episódio, fui tomada de tal clareza? É coisa que não explico, mas que aprendi, bem mais tarde, a respeitar e considerar. Na época, aos vinte anos, desqualificava intuições e as atribuía ao medo, pura e simplesmente. Na maturidade, alguns poucos episódios ensinaram-me o quanto essas certezas merecem ser levadas a sério.
Mas, enfim, urge levantar-me e ir ao encontro. Tem tempo, ainda é cedo, digo-me resistindo. Mas o que é isso agora? Por que o medo? Não estarei sozinha, certamente os amigos - aqueles que restaram - estarão todos lá. Mas os pensamentos parecem ter vida própria e torno a divagar. Sorrio com amargura ao pensar que não temo, diante dele, o estrago que os anos provocaram naquela minha figura de mocinha, que inspirava sua ternura. Não, não há o que temer. Em contrapartida, sua imagem de rapaz, congelada, me acompanha. Penso ainda, que não há como imaginar um Flávio sessentão. Simplesmente não consigo. Além disso, não é necessário. Ele está morto há trinta e quatro anos e será enterrado hoje.
A dor espeta-me e levanto finalmente da cama. Quase no mesmo instante um sentimento de vitória me invade, em paradoxo à dor que ainda me aperta o peito. Acostumada a tais ambivalências, esforço-me em concentrar os pensamentos na batalha vencida. Depois de tanto tempo, o pouco que restou de Flávio foi finalmente encontrado, escondido que estava em cova clandestina. Mas este pouco foi suficiente para provocar barulho e, como disse alguém, ajudou a desconstruir o esquecimento sobre aquele tempo de barbárie.
Mais segura de mim, por acaso volto a olhar o facho de claridade que entra da janela e percebo que a brisa suave faz ainda flutuar fiapos luminosos. Consigo aprontar-me e saio rapidamente. Ao chegar, de pronto me emociona a visão altiva e frágil de Dona Helena, a mãe de Flávio que, aos oitenta e nove anos, parece estar somente esperando enterrar o filho para poder finalmente descansar. Ao fundo, diante da urna coberta com a bandeira do Brasil, ladeada pela família, por uma pequena multidão, incluindo repórteres e inúmeros amigos, uma faixa:

PELA VIDA, PELA PAZ, TORTURA NUNCA MAIS!
À memória de Flavio de Carvalho Molina e em homenagem à sua família, que lutou uma eternidade para conseguir identificar seus restos mortais e enterrá-los dignamente.

Maria Luiza de Carvalho
mluiza_carvalho@yahoo.com.br

segunda-feira, 13 de abril de 2009

CENA CARIOCA

Manhã de outono, lindo dia de sol. Termino minha caminhada no calçadão e me dirijo ao quiosque para tomar água de côco com todas as promessas de sais minerais, carboidratos, proteínas, fibras, ferro, hidratação, etc. Respiro fundo, sinto-me bem: mais um dia de dever cumprido com meus exercícios.

Enquanto espero que abram o côco, escuto uma voz de moleque atrás de mim:

_ Tia, me paga aí um lanche!

Desestressada e de bom humor, resolvi fazer o gosto do menino, que aparentava cerca de doze anos de idade. Vindo da classe carente, apresentava corpo franzino e cabelos muito desalinhados. A roupa, grande demais para seu tamanho, denunciava o jeitinho criativo, próprio dos necessitados.

_Diga aí o que você quer comer.

A despeito de seu aspecto desfavorecido, o garoto tinha algo peculiar e atrativo em seu semblante que só encontro em pessoas dotadas de uma forte auto-estima.

_ Hoje quero algo especial. Vê aquele quiosque de lá? É ali que vende o melhor cachorro quente da praia de Copa. Se a tia não se incomodar, faça o favor de ir até lá comigo.

Pega de surpresa, minha primeira reação foi a de pensar que aquele garoto era muito folgado. Ah, não iria lá e pronto! Ele que comesse o que tivesse neste quiosque aqui, ora bolas! Brinquei:

_ Tu queres mesmo que eu vá lá naquele quiosque da esquina, meu rei? Queres que eu te sirva também?

_ Que te custa, tia? Se vai fazer um bem, faz logo por completo.Nova surpresa. Aquele pirralho conseguiu colocar-me em cheque comigo mesma. Malcriado, como ousa? Porém, como estava em meus melhores humores, resolvi aceitar o desafio e ver até onde ele me levaria.

_ Tá legal. Espere que eu termine meu côco e vou lá contigo.

_ Não se apresse tia, tenho todo o tempo do mundo!

Disse sentando-se numa cadeira e entoando uma música pop qualquer. Chegando ao referido quiosque, disse para o atendente:

_ Prepara aí o melhor cachorro quente da casa pro meu amigo aqui.O meu novo amiguinho, no entanto, já havia se acomodado, confortavelmente, debaixo do guarda-sol, descansando as pernas em cima de outra cadeira. Quando me dei conta, já estava fazendo o papel de garçonete dele.

_ É só cachorro quente que você quer?

_ Claro que não, tia. Manda ver uma fanta laranja bem gelada e me traz um copo com gelo e limão.

_ É pra já!

Não entendia porque, mas estava gostando daquele papel e procurei servir bem ao meu nobre cliente, afinal, clientes têm sempre razão, não é mesmo? Trouxe a fanta bem gelada e o copo com gelo e limão que ele pediu.

_ E aí, mais alguma coisa?

_ Tia, já que tu tá na empolgação, me traz um guardanapo para eu forrar a mesa que tá meio suja. Ah, sim, e fala pro cozinheiro que eu não gosto de cebola no molho. Só ketchup, maionese e mostarda. Se tiver batata palha, também pode ser.Dado o recado, esperei junto com ele, sentada ao seu lado.

_ Como é seu nome?

_ José Washington da Silva Neves, ao seu dispor.

_ Cadê sua mãe e seu pai?

_ Minha mãe tá em casa, que rua não é lugar de mulher. Meu pai, por aí, catando lata pra fazer uma grana extra.

_ E você, não vai à escola?

_ Sempre que posso, tia. Hoje não dá, porque tive que dar um apoio ao velho. Catei umas latinhas do Posto Seis para cá. E ele me liberou pra descansar. Depois desse lanche, volto ao trabalho.

Seu olhar era de adulto e seu discurso, de responsável. Senti um misto de carinho e admiração por ele, mas uma ponta de preocupação por seu futuro e muita indignação por nosso sistema perverso e seus dirigentes não oferecerem oportunidades para aqueles meninos.

_ O que é que você quer ser quando crescer?

_ Quero ser forte e trabalhador feito meu pai, tia. Ah, sim, e ter uma mulher bonita pra ficar em casa e criar meus filhos. Penso também em ganhar uma boa grana para trazer a patroa pra comer esse cachorro quente aqui comigo, todos os domingos. E tu, tia? Tu trabalha?

_ Não tanto quanto você.

_ Mulher tem que trabalhar em casa, tia. O homem é que vai pra rua e faz o serviço mais pesado.Terminou de comer seu cachorro quente, limpou a boca com o guardanapo, espreguiçou-se e cantarolou trecho de outra música pop qualquer.

_ Valeu, tia. O próximo fica por minha conta e eu te convido.

_ Valeu, José Washington. O prazer foi meu.

Fiquei olhando seu pequeno vulto desaparecer por entre outros muitos vultos do calçadão. Lá se ia mais um brasileirinho de boa índole, trabalhador e cheio de esperança para o futuro. Várias coisas haviam me impressionado nele: sua personalidade autoconfiante, seu jeito protetor com as mulheres, seu jeito prematuro de lidar com o outro e sua capacidade de tornar “especiais” as coisas que ele gostava. Devia sentir o amor dos pais, pensei, senão, o que faria com que me olhasse daquele jeito, com aquela certeza de que não seria rejeitado? Pequeno homenzinho vive se safando bem dos problemas do dia-a-dia e tem certeza que é dele o “serviço mais pesado”.

Será que ele vai se conservar assim no futuro? E quando vier a adolescência e ele despertar diante de todas as perversas injustiças sociais? Como fará “uma boa grana” sem estudos e sem oportunidades? Apresentar-se-á ainda como José Washington da Silva Neves, “ao seu dispor!”? Ou como mais um Zé Ratinho, “você perdeu!”? Quais instrumentos usará para ganhar dinheiro e levar a patroa para passear aos domingos? Resistirá às ofertas “tentadoras” oferecidas pela turma do tráfico? Que “serviço pesado” terá que fazer para ter uma “mulher bonita em casa”? Será um prazer para a sociedade ou mais uma ameaça?

Fiquei pensando nas palavras que ele me disse: “se vai fazer um bem, faz logo por completo” - eu fiz um pequeno bem “por completo” e tive um grato retorno. Nossos governantes poderiam aprender esta lição: façam o bem “por completo” para essas crianças carentes e suas famílias que a sociedade agradecerá. Que tal se o dinheiro “arrancado” do cidadão com tantos impostos for destinado, realmente, para a saúde e educação dessas crianças carentes e de suas famílias? Que tal se o Mensalão for desviado dos bolsos dos gordos parlamentares para dar uma vida digna aos nossos brasileirinhos? Que tal se, ao invés de nosso sistema criar tantos Ratinhos e Elias Malucos, transformar nossos pequenos Josés e Joãos em trabalhadores orgulhosos de si, e de suas famílias?

Convido nossos governantes a pensarem: se ao invés de criar falsos programas de assistencialismos ou caridades do tipo Fome Zero, fossem criados recursos verdadeiros para investir nesses meninos e suas famílias, não estariam propiciando uma sociedade mais justa e menos violenta? Não é investindo que se lucra, plantando que se colhe e dando que se recebe? Pois bem, a maneira de se conseguir uma civilização mais ética e mais humana no futuro é investindo nesses brasileirinhos agora, “por completo”. O próximo bem, com certeza, será por conta deles. E a sociedade, ao invés de se envergonhar de seus representantes, muito agradecerá.

Rio, abril de 2009
Marisa Queiroz

segunda-feira, 6 de abril de 2009

O CARTÃO

Como é que é?
É isso aí que eu te falei. O cara me entregou o cartão dele, assim sem mais nem menos , foi tudo muito rápido.
Assim sem mais nem menos, Ana?
Eu entrei no elevador , tinha um montão de gente, um bebê lourinho no colo da mãe, sabe como é - toda mulher olha pra uma criança - eu olhei. Admirei o bebê, tive até inveja da mulher segurando aquela coisa fofa. Não dei muita bola para quem estava a minha volta. Vi, claro, que tinha um homem ao meu lado, de terno, assim meio grisalho, acho que ele sorria. Só sei que quando saltei no andar do Dr. Arruda ele saltou junto comigo. Era alto, cabelo levemente grisalho, ah... mas isso eu já falei. Enfim, não dei a mínima bola.
Mas se você não deu a mínima pra ele, como é que ele lhe deu seu cartão?
Bem, ele me perguntou se eu conhecia o acupunturista. Chegou muito perto, tão perto que senti o seu perfume. Se eu sabia a sala. Aí eu falei que não. Imagine se eu ia saber a sala de um acupunturista! Então virei-me e entrei na sala do Dr. Arruda, meu ginecologista, lembra dele?
Pararam para beber um coco gelado no quiosque. Lá estavam bebês lourinhos com suas babás enquanto as mães, no ar refrigerado de suas casas, desperdiçavam os sorrisos transbordantes de seus filhos. O sol transformava a praia, o morro lá adiante, e as pessoas que caminhavam no calçadão, numa imensa massa de calor cinzento. Ana afasta do rosto os fios de cabelo por onde descem minúsculas gotas de suor. Não adianta buscar alivio no mar que, com sua água salgada, ajuda ainda mais a esturricar a pele. Chega a amaldiçoar secretamente os verões do Rio de Janeiro que a cada ano voltam sem pudor. Para qualquer lado que ela olhe alguma coisa a perturba. Mulheres perfeitas, mulheres que tentam esconder suas imperfeições, homens que não lhe dizem nada e, homens que lhe diriam muito, se ela tivesse coragem. Sorve o último gole da água tão doce do coco, amassa o canudinho e joga-o na lata de lixo cheia de cocos vazios como tristes cabeças degoladas.
Droga! esqueci de passar o filtro solar.
Lá vem você, Ana, com essa história de novo. Esquece o filtro solar, esquece as rugas.
As rugas tudo bem. Difícil é esquecer aquela mancha acima do seio esquerdo que a cada verão teima em voltar, um pouco mais vermelha, um pouco maior. Começou como uma simples descamação. Um dia Ana puxou a pele e ela soltou, fininha como uma asa de libélula. Voou no brilho da manhã ensolarada como esta. E então pensou: estou descamando. Lembrou-se da frase que leu do amigo Caio: “Tinha secado: esse era talvez o ponto”. Qual teria sido o seu exato ponto? Quando se viu refletida nos olhos de Paulo e se deu conta que já não era mais a mesma? Mas claro que ela continuava a mesma, o tesão dele é que havia sumido. O sexo febril de outros tempos, que irrigara sua pele como uma seiva, havia cessado. Naquela manhã, ensolarada como esta, Ana se deu conta que algo se inquietara para sempre no fundo do seu ser.
Em que você está pensando Ana?
Em nada. Sei lá. No bebê do elevador. Se eu tivesse um filho seria lourinho?
Ora, Ana, não vamos entrar de novo nesse assunto. Olha a sua volta mulher, veja que manhã caliente, tem tanto homem bonito, sarado, dando mole por aí. Não é o Gilberto aquele ali? O Gilbertão do nosso tempo? Tá meio caidaço, não?
O Gilbertão fora só mais um na vida de Ana. O “nosso tempo” ela agora percebe que fora o tempo do desperdício. De sorrisos que endureciam no rosto madrugada afora, de beijos que queimavam a boca, de olhares que sinalizavam que o sexo viria depois, sem vontade, entre as dobras do lençol que cheirava a alvejante. Ana detestava os motéis e mesmo assim. Um dia numa festa, conheceu o Paulo que a beijou diferente, quis saber quem era ela e fez com que o sumo do amor corresse nas suas veias irrigando os poros.
Mas afinal Ana, o que dizia o cartão?
Ora, nada. Embaixo do nome dele estava escrito: Diretor Executivo.
Uau! De quê?
Ana não sabe onde pusera o bendito cartão. Que atrevimento daquele homem que mal olhara para ela, mal falara com ela e de repente, entra na sala do Dr. Arruda e lhe entrega o cartão. Sob os olhares das outras mulheres, ela o guardou fervendo como um segredo. Lembra-se muito bem do que estava escrito. Um nome duplo, um cargo importante, uma firma conhecida, dois telefones, e-mail e o celular. Ele entregara tudo. À noite Ana é assaltada pela lembrança do perfume dele. Sonha com cheiro de criança, com as mulheres da sala de espera do Dr. Arruda que gritam palavras sem som. O quê? Ao acordar no quarto escuro, a única luz vem da tela do computador. Ana levanta-se e vai em busca de qualquer coisa. Uma mensagem. Nada. Há quanto tempo ela não recebe uma mensagem que valha a pena, que seja endereçada a ela, de alguém que tenha pensado nela. Então lembrou-se do cartão.
Diretor Executivo de quê, Ana?
Não sei. Não te falei? Perdi o cartão.
No ombro, perto do canto esquerdo do coração, a cada ano, a mancha aparece maior e mais vermelha. Como um mapa ela faz a geografia de uma seca. Do processo que começou lento, de dentro para fora, do coração para os braços, porque foi o coração quem primeiro começou a ficar surdo para suas próprias batidas. Depois foi a vez das mãos que pouco a pouco se enrijeceram para um gesto de carinho. Por fim os sorrisos sumiram do seu rosto. A última gargalhada ficou perdida no tempo. Mas, ao abrir a janela para o novo dia, Ana lembrou-se da sacola do supermercado. Lá no fundo, perdido entre a nota das compras estava o cartão. Nome duplo, cargo importante, firma conhecida, telefone, e-mail e celular. Ele havia lhe entregue tudo.

Maria Helena Mossé
setembro de 2008

Maria Helena Mossé

Minha mãe dizia que eu falei aos noves meses de idade. Provavelmente aos ouvidos dela, mãe apaixonada. Mas como filha única devo ter aprendido cedo que para conviver com adultos é preciso se expressar bem. Da palavra falada para a escrita foi um pulo. Comecei a ler revistinhas infantis e depois tudo o que me caía nas mãos. O livro era, e ainda é, o meu cúmplice quando na cama sem sono, recorro ao conforto e à magia de uma historia bem contada.

“O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir foi um divisor de águas em minha vida. Para quem tem uma esgarçada memória, os livros também serviram de guias para que eu me reencontrasse em cada um deles.

Minha profissão me levou a ouvir histórias. Da mistura das fantasias dos outros com a minha imaginação surgiu uma incrível vontade de escrever contos. Passei a freqüentar oficinas de Literatura. Buscar a palavra certa, acertar com a narrativa, tem sido um esforço e a descoberta de um imenso prazer.