sexta-feira, 12 de junho de 2009

O GATO


Antes de acender o cigarro, depois de abrir o maço e cuidadosamente escolher um, como se fosse talvez o último, a mulher passeia a mão nos pêlos do gato. Deitado no sofá ele muda de posição, oferecendo seu corpo para mais carícias. A mulher está em pé, ao lado do abajur. Cigarro aceso entre os dedos, ela solta a fumaça em círculos contra o fundo escuro da parede. O gato volta seus olhos amarelos em direção à imagem da mulher de encontro à luz. Ofuscado, suas pupilas transformam-se em riscos, finos como cabelo. Depois, Irene se afasta. O gato a segue, o rabo em S, ao sabor dos passos da mulher que caminha em direção ao quarto. Na mesa de cabeceira o vidro do remédio para dormir está com a tampa aberta. Irene não se lembra se tomou a dose de costume, ou quantas doses tomou. Sente-se confusa, a cabeça esfumaçada. Ultimamente tem adicionado ao remédio uma dose de uísque, o bastante para potencializar a droga. Você é louca, diria Fernando. Mas ele já não está mais aqui. Com ele foi-se a censura e algumas outras coisas a mais, a sensação de segurança por exemplo, ou de ter uma companhia à noite, além do gato. Foram-se também o telefone eternamente ocupado, o zapear infernal dos canais de TV e foram-se, principalmente, as camisas para lavar e passar. Dalva, a empregada, não reclama mais. Só de ter que limpar o pêlo do gato no sofá.
No quarto Irene afasta a colcha da cama, volta-se para o animal e com um movimento leve do pé, o empurra para fora do quarto.

O que se passa com ela? Irene sempre me deixou dormir na sua cama. Até o dia em que um tal de Fernando ocupou o meu lugar. Como se não bastasse trouxe com ele um poodle chamado Mike que teve a ousadia de querer ocupar meu cesto. A minha vida virou um inferno. Enraivecido eu eriçava meu pêlo deixando claro quem mandava nesta casa. Finalmente venci, faz pouco tempo que o tal Fernando sumiu levando pela mão seu cão ridículo.
Voltei a minha vida tranquila e aos lençois de Irene, perfumados de lavanda.
Irene. Eu estava nos seus braços quando abri meus olhos pela primeira vez. Fixei instantaneamente a ternura no seu olhar. À minha volta, luzes e sombras me diziam que existiam outras formas além daquele rosto. Depois, num átimo, passei a controlar cada milímetro deste espaço que viria a ser o meu mundo. Nele aprendi a caminhar sem tocar em nada, sabendo precisamente por onde ir e o que fazer. Com o passar do tempo minha experiência se ampliou. Sei tudo o que se passa com Irene, cada mínima variação do seu estado de espírito, do leve levantar de uma sobrancelha ao retesamento do seu corpo. Sei o que significa a leveza ou o peso das suas mãos sobre meu pêlo. Agucei meus sentidos ao ponto de perceber presenças nesta casa que ninguém vê. Sou um gato para quem passado e futuro nada significam. Sou um gato para quem a vida está imersa no caldo de minhas visões, dos ruídos e cheiros que definem este cenário, de movimentos que me fazem saltar para o inesperado quando por um instante adivinho a exaltação da liberdade.
Com Dalva, a empregada, eu reconheço minhas dificuldades. Quando chega de manhã, ela me encontra no sofá. Espanador na mão, sai pra lá gato, começa o caos. Primeiro, para o meu horror, ela muda os objetos de lugar. Num frenesi rítmico ela se move. Sons pontiagudos cortam o ar levantando a poeira que faz arder meus olhos. Sinto-me perdido. Corro para o meu cesto onde finjo que durmo. Mais tarde, com voz arrependida, vem cá meu gato, ela me chama com uma tigela de leite.
Ao cair da tarde espero que Irene volte à casa. Depois do jantar gosto de brincar com ela enquanto está no computador. Sei que a faço feliz. Quando Irene pousa os óculos na mesa é hora de ir para a cama.
No quarto, quando uma luz fraca escorre pela parede, percebo que o sol está para nascer. Em silêncio, deslizo da cama para não acordar Irene. É hora de ir para a varanda esperar pelo canto dos passarinhos. Fascinado, ouço. É quando lanço o meu grito em busca de um eco. Se existe outro mundo além do meu, não sei.

Foi a empregada quem chegou primeiro e viu que o gato não estava no sofá. Estranhou a porta fechada do quarto da patroa. Irene ainda respirava de mansinho quando os homens de branco vieram buscá-la. No chão o vidro vazio de remédios estava ao lado do copo onde o resto de uísque escondia a marca de geléia barata. Os vizinhos foram muitos gentis e perguntaram o que fazer com o gato.
Dalva o encontrou na varanda. O vento batia na contramão do seu pêlo trazendo no ar um cheiro de lavanda.

Maria Helena Mossé

6 comentários:

  1. Maria Helena, seu conto me remeteu a velhas lembranças de lençóis perfumados e de uma casa sempre amável e percorrida por um gato nem tanto. Parabéns, vc produziu um elegante cenário de suicídio.
    Epaminondas

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  2. Maria Helena, escritora e poetisa, seus contos seus contos iluminam nossa alma tal qual o nascer do sol tona visível a escuridão. Abraço afetuoso. Teu fã luso.
    Godofredo

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  3. Maria Helena

    a bonita está linda na foto , gostei do conto ...
    gostei tb do nome do poodle...
    beijos
    Andrea

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  4. Bom poder de síntese, cativa e absorve o leitor numa narrativa ao mesmo tempo rápida e eficiente. Gostei também da idéia da foto. É gato ou gata? Tão lánguida...

    Ariovaldo Siqueira, Natal, RN

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