sábado, 6 de junho de 2009

O CASARÃO DAS MIL JANELAS

Um cheiro de café e fubá entra pela fresta da porta. É a preta Isaura que tira do fogão, aceso a lenha, um bolo, uma rosca, um pão. É ela, também, que entra e escancara as janelas inundando o quarto de luz.
Seis horas; nós, rapazes sonolentos ainda embriagados pela cachaça madrigueira, resmungamos e gritamos. Mas o aroma matutino nos faz calar a algazarra e correr à mesa. Madeira bruta, tombada na mata, que talhada a faca preenche a parte nobre do salão.
Janelas abertas, uma, duas, vinte, permitindo que o sol tamborile sobre a louça alva que, convidativa, nos espera. A boca amarga toca o quente do leite, o sal da manteiga. A luz que entra faz arder os olhos. Uma folha da janela se fecha.
Estamos prontos, espingarda nas costas somos bravos caçadores. Cão trilheiro ladra anunciando a marcha. Ao longe, um olhar sobre o casarão e suas mil janelas. O vento fustiga as cortinas, o grito da preta velha ecoa no ar. Nós caçadores seguimos em busca de aventuras.
Passa a manhã, sol a pino, regressamos famintos. Longe, o casarão se torna branco, muito branco no contraste com o céu de um imaculado azul. Na cintura o cinto pesa, são perdizes e codornas, abatidas por tiros certeiros meio à revoada no chapadão.
Mesa na varanda, cheiro de carne. Porco assado mergulhado na banha. Cachaça na garrafa, tilintar de copos, janelas que batem. É o vento que sopra sonolento lembrando que elas, as janelas, estão lá, azuis contra o branco calcário das paredes.
Preguiçosos, nos recostamos. Rapadura na boca adocica a fumaça, que entra via palha seca do cigarro caboclo. Fumo de rolo, velho contador de estórias e casos. Riso gaiato, anéis de fumaça que se desprendem no ar. Ao longe, o som da roda do engenho que trabalha incessante, fazendo correr a garapa da cana.
Horas mornas e sombrias, a tarde cai dando um tom alaranjado às paredes. São grilos e sapos, vaga-lumes e mariposas que, num compasso toante, compõem uma melodia que nenhuma orquestra ousou imitar.
É o banho no açude gelado, é a toalha que, cheirando a sabão de cinzas, nos recebe num afago. É a barriga que ronca em comunicação certeira à panela que, fumegante, prepara a grossa sopa de entulho.
As janelas uma a uma vão sendo fechadas, como olhos que procuram descanso. Oculto pelo crepúsculo está o casarão. No mato o grito da coruja, o uivo do guará desperta a fantasmagoria reinante.
Tinha quinze, vinte, vinte e cinco anos, não lembro. Apenas surpreso me vejo diante do casarão; mil janelas, mil aventuras.
O sol, mais uma vez tamborila na mesa. Olho, é ela, uma janela aberta, escancarada, permitindo que ainda trinta, quarenta ou cinqüenta anos depois, me lembre que a vida está aí como um velho casarão cheio de janelas a serem abertas...

Setembro 2001

Um comentário:

  1. Muito gostoso de ler, Suely. Refresquei minha memória olfativa e visual dos anos vividos em minha terra natal e no aconchegante seio familiar. Beijos
    Marisa

    ResponderExcluir