segunda-feira, 1 de junho de 2009

SOBRE BRUXAS E FADAS - UMA CRÔNICA CARIOCA

O dia estava farrusquento assim como seu humor. Manhã sem sol, mormaço pesado e ameaçando chover. Ela precisava chegar logo em Botafogo e naquela hora da manhã levaria uma meia hora. No mínimo. Mas precisava chegar antes. Estava atrasada. Dirigiu preocupada por toda a Jardim Botânico e descendo a Voluntários, torcia para encontrar vaga no estacionamento da vila da Real Grandeza. Nem sempre conseguia. Aí, com certeza, seriam mais quase quinze minutos de atraso. Ia preocupada com a consulta médica da véspera, com a receita nova de baba de moça que precisava testar, com a voz esganiçada da vendedora que insistia em dizer que aquele produto não se fabricava mais. E e o nariz dela? Igual, só o da amiga da avó, que uma vez quando criança, ficou rindo a tarde inteira, com as irmãs, daquele gigantesco nariz. Distraída, ao ver a loja de produtos para bichos de penas e pelos, lembrou dos cachorrinhos que nasceram. Precisava avisar ao vizinho que queria comprar mais de um, que faltavam só poucos dias. E aquele homem estranho andando no meio dos carros? Será que vai assaltar alguém?
Quando chegou, um carro atrapalhava a visão da entrada. Sem pensar muito deu uma guinada rápida e entrou na frente para tentar saber se havia vaga ou não. Só então percebeu que a mulher na direção do outro carro fazia a mesma coisa, e que havia fechado o carro dela. Sem graça, orientada pelo porteiro, entrou na frente e aliviada pela hora, estacionou. Enquanto aguardava ser chamada, andando de um lado para o outro, irrompeu na sala de espera, a mulher, alta, irônica e bonita, falando alto: Aquele carro preto é seu? É, você me desculpa… Mas antes que conseguisse dizer mais alguma palavra a outra despejou sem mais nem menos: Seu carro é mesmo lindo! E está muito bem conservado. A pintura é original? Você deve cuidar muito bem dele! Você não quer me vender seu carro? Assustada com tamanha efusão para um carro econômico, pequeno e sem grandes atrativos a não ser cuidados normais e diários, ela respondeu que não. Não estava interessada em vendê-lo.
Intrigada com a conversa da mulher, novamente se perdeu em pensamentos e lembranças, enquanto dirigia por Botafogo até o Cosme Velho. Listou tudo o que precisava lembrar de fazer. Tantas coisas diferentes, fáceis de esquecer. Um aniversário para parabenizar, uma conta para pagar, um email para responder e no fim do dia, não tinha jeito, sempre faltava alguma coisa. Encontrou a mãe. Iam almoçar na cidade, e fazer compras de Natal. Mas, mal conseguiu sair do portão. Na calçada em frente precisou fazer uma manobra e não viu a mureta que atrapalhava seu caminho. Bateu. Na hora lembrou-se da mulher. Mas, que nada! Não ia ficar ali preocupada. Ela é que era distraída mesmo. Essas coisas não existem. São frutos da nossa imaginação. Deus é bom e só a Ele devemos temer, resgatou das lições que recebeu na escola católica. E, com um frio passando pela espinha, sabe-se lá, resolveu rezar baixinho. Sempre é bom se proteger.
Na semana seguinte, na mesma sala de espera, com o carro batido estacionado em frente, novamente aparece a mulher que vai entrando eufórica: Oi, Você bateu seu carro? O que houve? Seu carro maravilhoso? Agora não vai mais poder vender? Com outro frio na espinha, mas sem perder a pose, ela nem pestanejou. Olhou séria para a outra e disse: Batido? Meu carro? Claro que não! - Mas não é seu carro que está ali fora, amassado? Não!! Eu nunca bati e não sei do que você está falando.
Virou as costas e saiu rapidamente sem permitir esticar mais nem um minuto aquela conversa. Dirigiu aflita. Não conseguia se concentrar no trânsito. Continuou em direção a Copacabana pelo escuro e sujo Túnel Velho. Só a visão da praia no final da Siqueira Campos conseguiu lhe dar um pouco de paz. Resolveu parar para caminhar um pouco. Precisava respirar ar puro e se liberar de todo e qualquer possível mau olhado. Driblou meninos de rua e guardadores de carro, atravessou as pistas da Atlântica e caminhou embevecida, ainda abalada com a conversa daquela manhã. Senhoras com suas acompanhantes, mães com suas crianças sujas de areia, baldes e pás, atletas compenetrados, todos passavam pra lá e pra cá. Resolveu sentar-se e aproveitar uma agua de coco. O quiosque, daqueles antigos, estava vazio a não ser por uma mulher que lia. A mulher lhe sorriu. Arriscou um sorriso em resposta ainda sem saber se deveria. Logo entabulou-se uma conversa. No começo cautelosa, aos poucos mais à vontade. Como era bonita a cidade e como era ao mesmo tempo maltratada. Malquista pelos seus moradores. E pelos seus governantes. Conversa típica de quem não se conhece. Era uma linda mulher. Alta, olhos azuis contrastando com a pele castanha. Perguntou de repente se poderia ajudá-la, só teria que ouvi-la, precisava ensaiar para uma apresentação. Claro que não, respondeu curiosa, mas ainda amedrontada pela experiencia daquela manhã. A estranha então levantou-se e sem cerimônia, tendo por palco a praia de Copacabana, como quem tem uma grande intimidade, declamou, para ela e só para ela, um dos mais bonitos poemas de Carlos Drumond de Andrade. Novo arrepio na espinha, mas esse lhe aqueceu a alma. O Rio tem mesmo de todas as coisas.
Junho de 2008

Um comentário:

  1. Bravo!!!Que bela naraçao! Passei um agradavel momento lendo seu texto.
    Beijos.
    Beth Menezes

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