quinta-feira, 8 de abril de 2010

JUREI-TE DE MORTE !


Sim, não te suportava mais. Tua simples presença já era motivo suficiente pra me causar enjôos e ira. Quando tu me assediavas
e encostavas tuas patas em minha pele, a repugnância e a injuria se instalavam em mim. Vinha lá dentro o mais profundo asco e um desejo imoral de te matar.

Flagrei-me premeditando a hora e a forma de acabar com tua raça! Constatei de forma cruel que havia uma vil assassina dentro de mim e nada pude fazer pra mudar. E tu? Tu continuavas passando por mim com teu habitual escárnio, tua habitual puerilidade. Me parecia um deboche ou sarcasmo! Oh! Tu nem sabes o quanto te odiei todas aquelas vezes que te encontrei!

Havia chegado o momento tão esperado e constatei, de forma totalmente estranha para mim, que consolidaria o prazer de ver teu sangue jorrando. Eu estava tremendo de febre há dias por tua causa e, cheia de ódio , alimentava o desejo de acabar com tua vida.

Naquele instante que passaste por mim novamente, fazendo aquele teu insuportável gracejo que parecia zombar de mim ... Oh, fúria incontrolável!
Veio a tona uma explosão de raiva contida da humilhação e do nojo que me causavas! Fiquei cega e, num ímpeto, golpeei-te com força e com as duas mãos. Sei que não és tão grande assim, és até miúdo e insignificante. Mas meu golpe foi pra matar um elefante. E ...te esmaguei! Sim, te esmaguei!!
Que prazer ao ver teu sangue em minhas mãos.
Mosquito miserável! Vinguei-me de ti!
Não passarás DENGUE a mais ninguém!

Marisa Queiroz
marisa.queiroz@terra.com.br

sexta-feira, 12 de março de 2010

CIAU, AMORE !


Ja te volim...
Disse ele um dia

Je t'aime...
Respondeu ela com langor

I love you..
Você acredita?
Ti amo...
Com todo fervor!

E ele se foi
Sem qualquer explicação
Ela ficou
E não quis saber a razão

Amor estrangeiro
Que não traduz a emoção
Deixa vazio o peito
E vai numa onda de verão

Ciau, amore!

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

DIZEM QUE SOU "CERTINHA"...


Já ouvi muito essa bobagem de dizerem que sou certinha e que não sou capaz de pecar. Dizem que além de ingênua, sou romântica, e que além de crédula no amor, vivo a me apaixonar.

Dizem e dizem porque muitos não sabem quem eu verdadeiramente sou e me julgam pelo que não podem adivinhar. Mas eu nem ligo pois, que mal existe em amar e se entregar? Neste sentido, sou certinha, sim, especialmente quando falo de meus sentimentos. E sou muito romântica quando sinto o coração disparar. Tenho o olhar ingênuo de quem descobre o amor como se fosse pela primeira vez.
Romantizo meus amores e em certos momentos acredito que cada um deles é único e insubstituível. Ah, como me ufano do amor quando estou envolvida com ele!

Sou mulher de amar um único homem, por vez, e por toda minha eternidade. Sou ingênua a ponto de acreditar que cada amante é um príncipe encantado com direito a cavalo branco e coroa de ouro. E como gosto de ser despertada por esses príncipes com a vibração sôfrega e túmida de seus beijos apaixonados.

E enquanto eles me levam ao reino do amor, em cavalgadas loucas e desenfreadas, fantasio em meus sonhos e devaneios, que a vida é um conto de fadas e que seremos felizes para sempre, até que a morte ou o fim da história venha nos separar.

Marisa Queiroz
marisa.queiroz@terra.com.br

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

JANELA PARA O CÉU


Acordei com um soco de angústia explodindo no peito. Novamente o pesadelo, o mesmo de sempre. Na iminência de ser descoberta como a autora de um crime que não cometi. A sensação de acuamento, o peso das evidências, tudo me deixa quase sem respirar. Embora não possa provar, sei que não sou culpada. No entanto, restam poucos minutos para que cheguem à conclusão de que sou eu a criminosa. E aí, diante de minha cara de pânico e na ausência de protestos, serei olhada e apontada como objeto de horror. Na morte do homem, não resta fuga possível, TODOS os indícios conduzem a mim. Não sei como agir diante de algo que conspira contra minha inocência. Inocência esta que, por minutos ainda mais aflitivos, suspeito não ser verdadeira.
Sento-me na cama e, bem à minha frente, a janela aberta de par em par escancara um céu limpo. Vejo minha mão que desliza pelo lençol e escuto, não o roçar do tecido, mas o farfalhar das folhas musicadas pela brisa. Nenhum ruído de trânsito na rua, nenhum grito de menino, só um galo cocoricando bem ao longe. No quadrado que me aparece emoldurado pela janela, o céu está pintado de um anil pálido, sem qualquer nuvem a manchar sua cor. Deve ser muito cedo, que horas serão? Ao invés de procurar o relógio, estico-me toda, braços e pernas na direção daquele azul e avalio como os pássaros devem gostar de voar naquele cenário.
Passo os olhos em volta e só então estranho o ambiente. Não é meu quarto. De chofre, cheia de euforia, lembro-me. Estou em um hotel e Florença está aos meus pés, é só descer o elevador. Caminharei e, mesmo sem pressa, poderei alcançar a Ponte Vecchio sem muito esforço. A angústia do pesadelo se desfaz por inteiro e agora estou entregue à grande aventura.
Há uma semana fugi da mesmice, do marido de tantos anos, das complicações rotineiras e embarquei sozinha para um sonho. Fiz questão de viver meu segredo. Um bilhete em envelope deixado junto à louça do café da manhã, já arrumada como sempre de véspera, deve ter provocado um grande rebuliço na cabeça de João e em toda a casa. Sorri, falando sozinha: paciência. Eu a tive tanta, por tantos anos! Um dia, ao acordar mais uma vez do pesadelo recorrente, deu-me um estalo e descobri que teria que fazer minha hora acontecer. Logo no dia seguinte comprei uma passagem para Roma - paga à prestação - e eis-me aqui à beira do Rio Arno, prestes a caminhar pela piú bella Firenze e, maravilha das maravilhas, a alguns passos de apreciar o David, de Michelangelo.
- Dane-se o mundo, viva o sonho!
Nesse ponto, ouço meu nome. Surpresa, volto-me na direção da voz e deparo com João de pé, ao lado da cama, me solicitando algo.
Pombas! Como então não estou em Florença ?!?
Após alguns segundos de total aturdimento, de súbito entendo. Plena de frustração, rosno qualquer resposta incompreensível e, em contraponto, o seu olhar tenta se desviar do abismo do meu rancor.


Maria Luiza de Carvalho
mluiza_carvalho@yahoo.com.br

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A BOUBOULINA DO VALDO


Arlete passa as mãos pelos cabelos compridos, tingidos com mechas louras. Satisfeita consigo mesma, conseguiu ficar na praia por todo o tempo de sol forte: está morenaça! Mas agora os prédios da orla de Copacabana começam a fazer sombra na areia, no inverno isso acontece mais cedo. É hora de reunir sua canga, dobrá-la curtinha em torno de seu quadril, a havaiana, a cestinha com a chave de casa. Pronto, só resta caminhar em seu andar gingado e rebolativo que a plebe dos três quarteirões, que a separam de casa, tanto gosta. Quando pensa nisso, nos fiu-fius que terá que ouvir até lá, murmura entre dentes – gentalha! Pensa com desprezo nos homens e pivetes que sem dúvida estarão em seu caminho, embora o sorriso estampado no rosto nos sugira que está longe de se irritar com as, vamos dizer assim, homenagens que recebe.
Mas não, ela não é mulher de qualquer um, ela é classuda e só aceita aproximações com alguém que lhe mereça. Terá que ser alguém bonito como era seu amado, que Deus o tenha, mas também com situação bem estabelecida, para lhe proporcionar o conforto que merece. Por instantes, passam nuvens em seu olhar, ao lembrar do desastre de ônibus que acabou com a vida do seu Arlindo, tão moço ainda, nem teve tempo de lhe deixar qualquer coisa de herança, coitado. Mas já se passaram vinte e quatro anos e ela já virou essa página, já casou e descasou três vezes, a vida continua, não tem jeito. Quem diria, tanto tempo se passou, mas ela continua enxuta, todos pensam que é dez anos mais nova do que de fato é. Ela é que não desmente...
Ainda bem que herdou de suas tias solteironas o apartamento quitinete, assim mora em casa própria, nem tão perto da praia como gostaria, mas em Copacabana, lugar bacana. Ao início de sua caminhada, se dá conta que hoje é quinta-feira, dia de feira na Rodolfo Dantas, que gosta de freqüentar no seu finzinho, quando fica uma patota, todos comendo e bebendo na barraca do Zeca, bom demais! Apesar dos ultimatos do fiscal, a muvuca acaba se estendendo até as 2 da tarde. Ri sozinha quando lembra que Zeca insinua que quando ela está presente, o Genivaldo, fiscal da feira, afrouxa um tanto suas regras porque lhe faz a corte, quer lhe agradar. Arlete não lhe dá confiança (imagina!), um muquirana morador de Campo Grande, não tem onde cair morto, ainda por cima metido a autoridade exigente com o cumprir da lei. Um chato é o que é! Se bem que, Arlete é obrigada a confessar, se considerarmos só sua estampa, o moço não é de se jogar fora. E, apenas por isso, ela não o escorraça, mas também não lhe dá confiança, bem entendido. Faz-lhe bem ao ego, não nega.
Valdo, que detesta que o chamem de Genivaldo, não vê a hora de terminar o trabalho e ir embora. Hoje está particularmente ansioso, pois marcou de ir ver a exposição do célebre Houdon, no Museu Histórico Nacional, no Centro, com entrada gratuita hoje à tarde. Oportunidade raríssima, que ocorre graças ao ano da França no Brasil. Conhece a maioria de suas belas esculturas de estilo neoclássico a partir das entradas virtuais no Louvre, que pratica com regularidade pela internet. Com ponta de amargura, pensa que jamais terá dinheiro suficiente para ir a Paris, muito menos com sua vida de boemia e farras, onde o dinheiro - sempre parco - escorre sem nem se dar conta. O seu salário é bem menor que o mês, ainda mais curto depois que teve a pensão da ex-mulher descontada em folha. Pelo menos não tem filhos para tornar a vida ainda mais complicada. Mora em casa alugada, nas lonjuras de Campo Grande, mas o que paga é de acordo com o pouco que ganha. Para ser honesto, não trocaria a casa aonde mora com quintal e ainda espaço para seu ateliê, por qualquer desses apartamentos pequenos de Copacabana. Vez ou outra consegue vender uma de suas telas de paisagens do Rio, lá na Praça General Osório, amealhando um extra modesto.
Mas, que diabos, hoje irá conhecer pessoalmente o que restou nessa vida de Jean Antoine Houdon, algumas de suas obras mais célebres, como o busto de Voltaire, por exemplo, com uma expressividade que emociona. Tudo isso ele explicou à atual namorada que de arte nada conhece, mas que gosta de acompanhá-lo nas suas andanças pela cidade, nos eventos de preferência gratuitos que não são assim tão raros de acontecer.
Pela enésima vez lamenta os descaminhos em seus quarenta e um anos de vida que o tornou fiscal da prefeitura, responsável pelo andamento das feiras livres da zona sul. Vamos, cara, não seja mal agradecido, você conseguiu um emprego público que muita gente boa gostaria de ter. É verdade, não falta quem queira estar no seu lugar, com um trabalho até agradável, onde tem de madrugar, para chegar junto com a bagunça dos feirantes, mas que acaba cedo, lá pelas duas da tarde. É, não é assim tão mal, dá até para se divertir um tanto e ainda sobra um tempo para usar seus pincéis e tomar uma cerveja com os amigos, que é do que mais gosta.
Chegado a brincar com as pessoas, conhece-as quase todas, feirantes e frequentadores mais assíduos e, modéstia à parte, considera-se simpático e querido pela maioria. O Zeca, por exemplo, dono de uma das barracas de temperos e pingas, super gente boa, adora mangar de deus-e-todo-mundo, incluindo os frequentadores de sua venda de batidas e caipirinhas depois do meio dia. Olha, lá vem chegando a dona Arlete, velhusca crente que abafa, coitada. A bem da verdade, Valdo é obrigado a confessar que se comove com suas faceirices e por isso sente-se quase na obrigação de corresponder a seus esforços de sedução. Quando não está com sua canga mal enrolada no quadril, fazendo-se de sensual, Arlete veste calças justíssimas de cintura baixa, deixando aparecer sua pele esturricada pelo sol, com protuberâncias notórias e flacidez de cinquentona e-lá-vai-fumaça. O Zeca insufla a vaidade da velha e Valdo surfa na onda, faz de conta que lhe arrasta a asa, com mesuras cheias de malícias. Ela finge que o esnoba, ele finge que se magoa e o amor-próprio da quase-idosa fica bem satisfeito. Riem muito, mas na presença da dona Arlete, desempenham o papel a sério. Divertem-se todos, pois o geral das pessoas percebe a encenação, se bem que ela também represente seu papel de quem não-está-nem-aí, embora saia saltitante e feliz.
É curioso, reflete Valdo, mas sinto que as brincadeiras, que dona Arlete nos propicia, despertam um inexplicável e genuíno sentimento de carinho e afeto, que transcende aquele cenário de pequenas vaidades e enganos. No fundo, talvez nos identifiquemos todos com o que há de mais humanamente patético naquela personagem que a velha representa. Digo ao Zeca que a Arlete é minha Bouboulina, aquela do Zorba, o grego, filme que ele não viu, mas que gosta só por me ouvir contar.
É, pensando bem, não tenho muito do que me queixar. E hoje, o Houdon ainda vai me lavar a alma, se vai.


Maria Luiza de Carvalho
mluiza_carvalho@yahoo.com.br

GALINHA GENÚ



- Prometi, tá prometido, nunquinha qui falo. Por mim, doutô Tonho ía saber é nunca. Se acabou sendo de sua ciência, como depois apercebi, tenho culpa não.
- Tou contando procês, mas sei que é gente amiga, né mesmo? E depois, muitos anos rolaram, quasi num tem mais precisão de segredo... E o véio aqui num sabe? Seu Tunico nas estranjas, o doutô senhor seu pai, que Deus o tenha, faz tempo que já foi encontrar Jesus, Nosso Senhor, que aquele num tinha dois tão bom nesse mundo... Só pode de tá no céu... É.
Uma larga pausa aconteceu aqui e, apesar dos olhares cheios de curiosa impaciência, ninguém se atreveu a cortar o silêncio. Todos mudos, esperando. Até que o velho retomou o tom manso de contador de causo.
- Ocês se alembra daquela febre que num deixava Maricota sair da cama? As criança tudo pequeno chorando pro mode num tinha quem cuidasse... eu aqui na roça a trabalhar na enxada que chuvia muito e o mato tomava conta... E a Maricota, coitada, lá largada sem se alevantar de tão fraca. Cheguei a imaginar coisa ruim, se cheguei! Mas o patrão, doutô Tonho, soube da doença da Maricota, sei lá como, e um dia se achegou aqui no sítio, vindo lá da cidade do Rio de Janeiro, sózinho pruque também com a chuva que num parava ninguém da família quiz vim, o doutô era homem de fazer essas coisa, vinha só pra atender uma precisão da gente... E foi sorte pra nóis, pois num é que sossegou a febre da mulhé, doutô Tonho deixou remédio e Maricota foi ficando logo outra e uma semana passada num carecia mais de cama... Num tô falando? O doutô curou ela, parecia mais era milagre e se fosse de meu jeito ser crente rezador, creditava na santidade do hôme. Creditava mesmo...
A pele morena crestada pelo trabalho ao ar livre, muitos anos debaixo de sol ou de chuva lidando com a plantação, com o controle do mato e com a criação dos animais - no sítio sempre teve de tudo um pouco - o corpo naturalmente musculoso, os ombros ligeiramente vergados, não muito, o que mais surpreendia os de fora era o seu belo sorriso de dentes muito brancos, ainda sem falhas. No momento em que sorria de modo franco percebia-se o belo homem que era, apesar da rudeza e falta de trato típica da gente da roça. Seus olhos evitavam encarar estranhos, mas em sua roda de amigos exprimiam firmeza ao mesmo tempo que derramavam afeto. Em sua candura e simplicidade, Zé nem atinava, mas todos ali sabiam, o quanto o patrão respeitava e estimava aquele caboclo, há tantos anos responsável pelo sítio. Opinião do Zé era sempre ouvida com respeito e atenção pelo Dr. Antônio. Aliás, não só o patrão admirava-lhe a sabedoria. Era notória a quase reverência com que os demais peões ouviam suas histórias. O problema era a parcimônia de vêzes em que o Zé se dispunha a relatá-las. No julgamento geral dos que o cercavam, era por demais discreto. No entanto, quando a turma pressentia disposição favorável no velho Zé, todos o cercavam ávidos e ansiosos pela narrativa.
- É, mas espera que já falo, hôme di Deus, conto direitim o causo como o causo foi.
Olhou um a um os que o rodeavam, como que avaliando o impacto que iria provocar. Pigarreou, limpando a garganta e começou a falar sem pressa.
- Quando a mulhé ficou boa e vi que tava curada, resolvi ir na cidade agradecer o doutô. Num pudia chegar de mão abanando e arresolvemos dá a Genoveva pro patrão. Isso, ela mesma, a melhor galinha que nóis já teve, a melhor parideira de ovo e a melhor chocadeira... Nóis tinha estima pela danada e só mesmo coisa tão séria e importante pra tomar decisão assim... mas doutô Tonho merecia. E, do jeito que eram, ele e mais seu Tonico, seu filho, íam ficar contentes com o presente, ora se íam!
- É... A gente sabia que o doutô andava aperreado com Tonico, menino bom, mas ainda com pouco sizo, querendo mudar o mundo – vixe que besteira – sem entendê que o jeito e a ordem das coisa é assim desde que o mundo é mundo, ora se! Ficava zangado quando o véio aqui tentava dar conselho pro mode dele num ter mais discussão com o doutô, pois tudo é como é... vai mudá não. Mas seu Tonico era tinhoso que ele só, volta e meia tava lá falando alto, no convencimento dos outro pro que achava direito.
Zé aproveitou uma segunda-feira que a comadre foi visitá-los, pediu-lhe para ficar por lá até sua volta do Rio de Janeiro, tão longe, ía ter que tomar trem e dois ônibus. Afinal, Maricota estava ainda fraca e os meninos davam trabalho, fora os cuidados com a casa e o terreiro.
Mas, como ía levar Genoveva? Genú, como a família do Zé a chamava na intimidade, só era igual às demais galinhas na aparência: penas brancas, pescoço feio, rugoso e avermelhado. Seus movimentos obedeciam à coreografia própria às da sua espécie: andar apressadinho, cabeça pra frente e pra trás, quando não estava virada pro chão num eterno cisca-cisca, tudo em ritmo rápido e ansioso... Até aí, nada diferente, portanto. Mas Genú, além de ser uma excelente poedeira – já havia livrado a família da fome em tempos difíceis – tinha um sexto sentido que a fazia entrar em pandemônio quando pressentia perigo: cocoricós berrados, asas abertas, vôos rasos e penas soltando pra todo lado, um fuzuê daqueles!... O interessante é que o estardalhaço da Genú não visava simplemente aos estranhos que se aproximavam do sítio, como faziam os gansos e os cachorros, que cumpriam tal papel. Não, o que a Genoveva parecia querer comunicar era algo mais sutil e, ao mesmo tempo, mais eloquente. Foi aos poucos que Zé e Maricota se deram conta que a galinha só dava espetáculo raramente, mas sempre na presença de determinadas pessoas tidas como encrenqueiras, invejosas ou, como dizia o Zé, gente du mal. Em pelo menos uma ocasião a Genú deu o seu alarme sem que nem Zé, nem Maricota atinassem a razão: foi com o filho do Tião, rapaz novo ainda, simpático e bem falante, que andara por lá perguntando se havia algum serviço que ele pudesse fazer. O Zé ficou de falar com o patrão, quando ele aparecesse, o doutor demorou a vir e, tempos depois, quando já estava quase esquecendo o assunto, não é que souberam que o dito filho do Tião tinha se empregado numa fazenda perto e fugira roubando a caminhonete do capataz... Vixe Maria! Tem que levar a sério os avisos da Genoveva... E não é que tem? Tem mesmo. De qualquer maneira, só os do sítio é que sabiam dessa qualidade da galinha. Era assunto comentado com alguma reserva, só entre eles, os que trabalhavam ali, mais o patrão e o patrãozinho. O Tonico ria muito e gostava de escutar as histórias, enquanto o Doutor Antonio ouvia, ficava sério e não emitia opinião. O doutor dizia que já vivera e ouvira muita coisa nessa vida para desacreditar de intuições, alertas ou presságios, mesmo que sinalizados por uma ave. E ainda mais, no caso, por uma galinha tão especial como a Genú.
É verdade, a Genú era mesmo especialíssima, tanto que o Zé acabou por resolver levá-la disfarçada dentro de uma cesta, confiando que, veja só, não seria traído por comportamento indiscreto de sua parte. Falou diretamente com a própria, explicando-lhe que só podia entrar no ônibus da cidade se ela ficasse bem quieta, sem que a notassem ali. E mesmo o Zé, que não era dado a crendices, confiou no entendimento da bicha. Pois não é que ela se acomodou no fundo da cesta e lá ficou, com a cabeça enterrada, mais parecendo um monte de penas brancas?! A Maricota ainda manifestou alguma dúvida, será que não era melhor esperarem o doutô ou seu Tonico aparecerem por lá para darem o presente? Será que essa viagem com a Genú ía dar certo? O Zé, claro, considerou suspeitas tais indagações, levou em conta a relutância da mulher, previsível e natural, em se desfazer de galinha tão amiga. E depois, para que o presente tenha valor de verdade tem que ser levado até onde está o presenteado, não tem graça esperar o contrário.
E lá se foram, Zé e mais Genú, para a cidade grande, para o Rio de Janeiro. Primeiro pegaram o ônibus até Arcozelo, em seguida tomaram o trem, quatro horas depois saltaram na Estação da Leopoldina, centro do Rio. O barulho do trânsito, o movimento das pessoas, todas correndo, todas com muita pressa, mas o Zé caminhando em frente, sem desgrudar de sua cesta, em meio à multidão.
Antes de pegar o outro ônibus, sentou-se em um banco de praça ali perto, precisava descansar um pouco. Lembrou do farnel que a Maricota lhe dera na última hora, coitada, preocupada que ele não passasse fome. Genú, comportadíssima, arriscou colocar a cabeça um pouco para fora, a olhar de soslaio o movimento, mas logo afundou novamente em seu novelo de penas.
Estava guardando o resto que não havia comido, quando quase deu um pulo de alegria. Não era Seu Tonico, cruzes, que estava bem ali do outro lado da rua? Nossa... Sorte grande, ele vai poder explicar melhor como Zé faz para chegar à Gávea. Agarra-se à cesta e apressa-se a alcançar Tonico. Atrapalha-se na hora de atravessar a rua, tem que esperar o sinal verde, são muitos carros todos correndo sem perceber que agora é o Zé que também tem pressa... Mas ninguém dá passagem e ele espera. Da sua calçada observa em frente e percebe que Tonico não está sózinho, são dois rapazes e uma moça entrando com ele naquela agência bancária da esquina. Percebe também, um tanto atrás, um outro homem que parece prestar atenção no grupo, sem no entanto se aproximar. O sinal abriu, mas Zé refreia a corrida e, coração apertado sem saber bem por que, reprime o chamado e vai caminhando na direção do prédio onde já entrou Tonico e seu grupo. Ultrapassa o homem que parecia segui-los, disfarçando sua apreensão, quer alcançar logo Tonico e avisá-lo que corre perigo...
- Bobagem, perigo nenhum Seu Zé, não se avexe, não, é só muito povo que passa, até parece uns aperreando outro... Mas, né nada disso não, deixe de inventar coisa, seu véio maluco... Pensava ele, tentando se acalmar e se esforçando por botar a cabeça no lugar. Vencendo o susto, entrou no Banco, decidido a chamar Tonico e falar-lhe naturalmente sobre o presente que trouxera. Naquela época, idos dos anos sessenta, os bancos não possuiam porta giratória, ainda bem, porque senão o Zé ía se atrapalhar com sua cesta. Aliás, ele reparara, Tonico também carregava uma sacola grande, que engraçado.

Mal entrou, deu de cara com Tonico que, instantâneamente lívido, reconheceu-o. Levantou o braço, como que fazendo sinal aos demais e foi caminhando em sua direção. Antes porém que o alcançasse, aconteceu. E isso o Zé não sabe explicar como foi. Quando se deu conta, a Genú tinha se soltado do fundo da cesta, voava loucamente por entre uns e outros, gritando um co-co-ri-co-có mais esganiçado que nunca, as pessoas sem conseguir entender o que estava a provocar aquele tumulto todo, um dos guardas do banco gritou mais alto uma ordem de prisão à galinha (?). Um verdadeiro escarcéu. A única coisa que Zé registrou, em meio à chuva de penas brancas e ao alarido geral, foi a Genú, em mais um vôo razante, acabando por derrubar o tal homem que desconfiara estar seguindo o grupo... É nesse exato momento que Tonico, sem vacilar, arrastou-o para fora e, já na rua, andando em ritmo só ligeiramente apressado, empurrou-o para dentro de um carro, o motorista já a postos, deu ordem de partida imediata. Zé e Tonico mudos, caras de susto. Seus amigos, ainda muito pálidos, estavam reduzidos a imensos pontos de interrogação, olhares fixos em Tonico, evitando falar. Quem diabo era aquele matuto que o companheiro colocara entre eles? O que significava a ação sustada com o fuzuê de uma galinha (uma galinha?!?) em polvorosa no meio da agência?

- É, o véio aqui achou que tava vendo coisa, mas hoje sei certo, num é invenção não, o Seu Tonico tinha uma arma escundida naquela sacola que arreparei no meio da confusão. Inté, acho sim, que os que tava com ele também tinha... Disse num precisá, mas Tonico insistiu em levá a minha pessoa prum taxi, me deu dinheiro pro móde voltá na mesma hora, que inda nem bem tinha chegado... Ele só carecia saber... Quando ficou só aqui com o véio, um minutinho só, quando voltou a voz minha e a dele... Só carecia saber se aquela galinha se tratava da Genú. E, depois que disse que sim, não era outra senão a própria, num deu pra explicar mais nada, ele tava num aperreio só e me pediu pra não falá nem com o doutô Tonho, nem com meu cumpade e nem com a mulhé. E, inté hoje, num contei não...
Ninguém mais soube da galinha Genoveva, nem mesmo se ela acabou sendo presa... Mas, bastante tempo mais tarde, em noite de lua cheia, quando papos intermináveis costumavam acontecer debaixo da mangueira e em volta das estórias do caseiro Zé, Doutor Tonho chegou a insinuar que a Genú foi decisiva no salvar Tonico... O velho Zé, batendo a cabeça a concordar, murmurou entre dentes:
- Ora se foi!
Maria Luiza de Carvalho
mluiza_carvalho@yahoo.com.br

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Erro na previsão de tempo para o coração!...


Hoje amanheci dividida. Como o tempo aqui no RJ, oscilo pro sol, oscilo pra chuva e depois me pergunto: qual foi mesmo minha previsão de tempo para hoje? Ah! Me lembrei. Como hoje é sábado, era pra amanhecer com uma luz radiante temperatura morna, mesmo sendo verão, e coração esfuziante, como se estivesse apaixonada. Também, tinha previsto meu despertar junto com o alvorecer. Respiraria fundo e caminharia na praia com os pés descalços, permitindo que as ondas os lambessem sensualmente, de vez em quando...
E eu apenas sorriria, os ofereceria novamente e as encorajaria a repetir a operação, suspirando e gemendo, iniciando um jogo de sedução, humm!.... Em seguida, ofereceria meus tornozelos, pernas, joelhos, coxas, e deixaria que uma grande onda me lambesse por inteira, de baixo para cima e me levasse ao clímax da sensação com gosto salgado. Permitiria que sua imensa língua, doce e molhada, invadisse todas as minhas grutas e segredos me deixando ruborizada, ofegante e com os nervos túmidos e prontos.
O mar tem sido o meu melhor amante... Silencioso, insinuante, imprevisível e arrebatador, na maré baixa, ele me conforta, me acaricia e me lambe suavemente . Na maré alta, me arrebata, me açoita, me puxa em suas correntezas, me arremessa, me afoga e me invade no fundo do meu âmago. Mas hoje, me acordei dividida a minha previsão falhou. Pela manhã, choveu em meus olhos, e uma nuvem negra nublou o meu coração. Senti falta dele e me agarrei às suas recordações. Caiu uma tempestade forte dentro de mim que me ameaçou como uma chuva de verão. Me alagou, me inundou, mas acabou em pouco tempo. Fui resgatada por um raio quente do sol de verão que me escancarou o sorriso e ofuscou meus olhos com luz ; esquentou m'alma, e como um arco-íris que promete um tesouro em sua ponta, instalou-se novamente a esperança em meu coração.
Estou correndo para ti novamente, oh! mar...

Marisa Queiroz
Rio, 01/03/08