segunda-feira, 26 de outubro de 2009

GALINHA GENÚ



- Prometi, tá prometido, nunquinha qui falo. Por mim, doutô Tonho ía saber é nunca. Se acabou sendo de sua ciência, como depois apercebi, tenho culpa não.
- Tou contando procês, mas sei que é gente amiga, né mesmo? E depois, muitos anos rolaram, quasi num tem mais precisão de segredo... E o véio aqui num sabe? Seu Tunico nas estranjas, o doutô senhor seu pai, que Deus o tenha, faz tempo que já foi encontrar Jesus, Nosso Senhor, que aquele num tinha dois tão bom nesse mundo... Só pode de tá no céu... É.
Uma larga pausa aconteceu aqui e, apesar dos olhares cheios de curiosa impaciência, ninguém se atreveu a cortar o silêncio. Todos mudos, esperando. Até que o velho retomou o tom manso de contador de causo.
- Ocês se alembra daquela febre que num deixava Maricota sair da cama? As criança tudo pequeno chorando pro mode num tinha quem cuidasse... eu aqui na roça a trabalhar na enxada que chuvia muito e o mato tomava conta... E a Maricota, coitada, lá largada sem se alevantar de tão fraca. Cheguei a imaginar coisa ruim, se cheguei! Mas o patrão, doutô Tonho, soube da doença da Maricota, sei lá como, e um dia se achegou aqui no sítio, vindo lá da cidade do Rio de Janeiro, sózinho pruque também com a chuva que num parava ninguém da família quiz vim, o doutô era homem de fazer essas coisa, vinha só pra atender uma precisão da gente... E foi sorte pra nóis, pois num é que sossegou a febre da mulhé, doutô Tonho deixou remédio e Maricota foi ficando logo outra e uma semana passada num carecia mais de cama... Num tô falando? O doutô curou ela, parecia mais era milagre e se fosse de meu jeito ser crente rezador, creditava na santidade do hôme. Creditava mesmo...
A pele morena crestada pelo trabalho ao ar livre, muitos anos debaixo de sol ou de chuva lidando com a plantação, com o controle do mato e com a criação dos animais - no sítio sempre teve de tudo um pouco - o corpo naturalmente musculoso, os ombros ligeiramente vergados, não muito, o que mais surpreendia os de fora era o seu belo sorriso de dentes muito brancos, ainda sem falhas. No momento em que sorria de modo franco percebia-se o belo homem que era, apesar da rudeza e falta de trato típica da gente da roça. Seus olhos evitavam encarar estranhos, mas em sua roda de amigos exprimiam firmeza ao mesmo tempo que derramavam afeto. Em sua candura e simplicidade, Zé nem atinava, mas todos ali sabiam, o quanto o patrão respeitava e estimava aquele caboclo, há tantos anos responsável pelo sítio. Opinião do Zé era sempre ouvida com respeito e atenção pelo Dr. Antônio. Aliás, não só o patrão admirava-lhe a sabedoria. Era notória a quase reverência com que os demais peões ouviam suas histórias. O problema era a parcimônia de vêzes em que o Zé se dispunha a relatá-las. No julgamento geral dos que o cercavam, era por demais discreto. No entanto, quando a turma pressentia disposição favorável no velho Zé, todos o cercavam ávidos e ansiosos pela narrativa.
- É, mas espera que já falo, hôme di Deus, conto direitim o causo como o causo foi.
Olhou um a um os que o rodeavam, como que avaliando o impacto que iria provocar. Pigarreou, limpando a garganta e começou a falar sem pressa.
- Quando a mulhé ficou boa e vi que tava curada, resolvi ir na cidade agradecer o doutô. Num pudia chegar de mão abanando e arresolvemos dá a Genoveva pro patrão. Isso, ela mesma, a melhor galinha que nóis já teve, a melhor parideira de ovo e a melhor chocadeira... Nóis tinha estima pela danada e só mesmo coisa tão séria e importante pra tomar decisão assim... mas doutô Tonho merecia. E, do jeito que eram, ele e mais seu Tonico, seu filho, íam ficar contentes com o presente, ora se íam!
- É... A gente sabia que o doutô andava aperreado com Tonico, menino bom, mas ainda com pouco sizo, querendo mudar o mundo – vixe que besteira – sem entendê que o jeito e a ordem das coisa é assim desde que o mundo é mundo, ora se! Ficava zangado quando o véio aqui tentava dar conselho pro mode dele num ter mais discussão com o doutô, pois tudo é como é... vai mudá não. Mas seu Tonico era tinhoso que ele só, volta e meia tava lá falando alto, no convencimento dos outro pro que achava direito.
Zé aproveitou uma segunda-feira que a comadre foi visitá-los, pediu-lhe para ficar por lá até sua volta do Rio de Janeiro, tão longe, ía ter que tomar trem e dois ônibus. Afinal, Maricota estava ainda fraca e os meninos davam trabalho, fora os cuidados com a casa e o terreiro.
Mas, como ía levar Genoveva? Genú, como a família do Zé a chamava na intimidade, só era igual às demais galinhas na aparência: penas brancas, pescoço feio, rugoso e avermelhado. Seus movimentos obedeciam à coreografia própria às da sua espécie: andar apressadinho, cabeça pra frente e pra trás, quando não estava virada pro chão num eterno cisca-cisca, tudo em ritmo rápido e ansioso... Até aí, nada diferente, portanto. Mas Genú, além de ser uma excelente poedeira – já havia livrado a família da fome em tempos difíceis – tinha um sexto sentido que a fazia entrar em pandemônio quando pressentia perigo: cocoricós berrados, asas abertas, vôos rasos e penas soltando pra todo lado, um fuzuê daqueles!... O interessante é que o estardalhaço da Genú não visava simplemente aos estranhos que se aproximavam do sítio, como faziam os gansos e os cachorros, que cumpriam tal papel. Não, o que a Genoveva parecia querer comunicar era algo mais sutil e, ao mesmo tempo, mais eloquente. Foi aos poucos que Zé e Maricota se deram conta que a galinha só dava espetáculo raramente, mas sempre na presença de determinadas pessoas tidas como encrenqueiras, invejosas ou, como dizia o Zé, gente du mal. Em pelo menos uma ocasião a Genú deu o seu alarme sem que nem Zé, nem Maricota atinassem a razão: foi com o filho do Tião, rapaz novo ainda, simpático e bem falante, que andara por lá perguntando se havia algum serviço que ele pudesse fazer. O Zé ficou de falar com o patrão, quando ele aparecesse, o doutor demorou a vir e, tempos depois, quando já estava quase esquecendo o assunto, não é que souberam que o dito filho do Tião tinha se empregado numa fazenda perto e fugira roubando a caminhonete do capataz... Vixe Maria! Tem que levar a sério os avisos da Genoveva... E não é que tem? Tem mesmo. De qualquer maneira, só os do sítio é que sabiam dessa qualidade da galinha. Era assunto comentado com alguma reserva, só entre eles, os que trabalhavam ali, mais o patrão e o patrãozinho. O Tonico ria muito e gostava de escutar as histórias, enquanto o Doutor Antonio ouvia, ficava sério e não emitia opinião. O doutor dizia que já vivera e ouvira muita coisa nessa vida para desacreditar de intuições, alertas ou presságios, mesmo que sinalizados por uma ave. E ainda mais, no caso, por uma galinha tão especial como a Genú.
É verdade, a Genú era mesmo especialíssima, tanto que o Zé acabou por resolver levá-la disfarçada dentro de uma cesta, confiando que, veja só, não seria traído por comportamento indiscreto de sua parte. Falou diretamente com a própria, explicando-lhe que só podia entrar no ônibus da cidade se ela ficasse bem quieta, sem que a notassem ali. E mesmo o Zé, que não era dado a crendices, confiou no entendimento da bicha. Pois não é que ela se acomodou no fundo da cesta e lá ficou, com a cabeça enterrada, mais parecendo um monte de penas brancas?! A Maricota ainda manifestou alguma dúvida, será que não era melhor esperarem o doutô ou seu Tonico aparecerem por lá para darem o presente? Será que essa viagem com a Genú ía dar certo? O Zé, claro, considerou suspeitas tais indagações, levou em conta a relutância da mulher, previsível e natural, em se desfazer de galinha tão amiga. E depois, para que o presente tenha valor de verdade tem que ser levado até onde está o presenteado, não tem graça esperar o contrário.
E lá se foram, Zé e mais Genú, para a cidade grande, para o Rio de Janeiro. Primeiro pegaram o ônibus até Arcozelo, em seguida tomaram o trem, quatro horas depois saltaram na Estação da Leopoldina, centro do Rio. O barulho do trânsito, o movimento das pessoas, todas correndo, todas com muita pressa, mas o Zé caminhando em frente, sem desgrudar de sua cesta, em meio à multidão.
Antes de pegar o outro ônibus, sentou-se em um banco de praça ali perto, precisava descansar um pouco. Lembrou do farnel que a Maricota lhe dera na última hora, coitada, preocupada que ele não passasse fome. Genú, comportadíssima, arriscou colocar a cabeça um pouco para fora, a olhar de soslaio o movimento, mas logo afundou novamente em seu novelo de penas.
Estava guardando o resto que não havia comido, quando quase deu um pulo de alegria. Não era Seu Tonico, cruzes, que estava bem ali do outro lado da rua? Nossa... Sorte grande, ele vai poder explicar melhor como Zé faz para chegar à Gávea. Agarra-se à cesta e apressa-se a alcançar Tonico. Atrapalha-se na hora de atravessar a rua, tem que esperar o sinal verde, são muitos carros todos correndo sem perceber que agora é o Zé que também tem pressa... Mas ninguém dá passagem e ele espera. Da sua calçada observa em frente e percebe que Tonico não está sózinho, são dois rapazes e uma moça entrando com ele naquela agência bancária da esquina. Percebe também, um tanto atrás, um outro homem que parece prestar atenção no grupo, sem no entanto se aproximar. O sinal abriu, mas Zé refreia a corrida e, coração apertado sem saber bem por que, reprime o chamado e vai caminhando na direção do prédio onde já entrou Tonico e seu grupo. Ultrapassa o homem que parecia segui-los, disfarçando sua apreensão, quer alcançar logo Tonico e avisá-lo que corre perigo...
- Bobagem, perigo nenhum Seu Zé, não se avexe, não, é só muito povo que passa, até parece uns aperreando outro... Mas, né nada disso não, deixe de inventar coisa, seu véio maluco... Pensava ele, tentando se acalmar e se esforçando por botar a cabeça no lugar. Vencendo o susto, entrou no Banco, decidido a chamar Tonico e falar-lhe naturalmente sobre o presente que trouxera. Naquela época, idos dos anos sessenta, os bancos não possuiam porta giratória, ainda bem, porque senão o Zé ía se atrapalhar com sua cesta. Aliás, ele reparara, Tonico também carregava uma sacola grande, que engraçado.

Mal entrou, deu de cara com Tonico que, instantâneamente lívido, reconheceu-o. Levantou o braço, como que fazendo sinal aos demais e foi caminhando em sua direção. Antes porém que o alcançasse, aconteceu. E isso o Zé não sabe explicar como foi. Quando se deu conta, a Genú tinha se soltado do fundo da cesta, voava loucamente por entre uns e outros, gritando um co-co-ri-co-có mais esganiçado que nunca, as pessoas sem conseguir entender o que estava a provocar aquele tumulto todo, um dos guardas do banco gritou mais alto uma ordem de prisão à galinha (?). Um verdadeiro escarcéu. A única coisa que Zé registrou, em meio à chuva de penas brancas e ao alarido geral, foi a Genú, em mais um vôo razante, acabando por derrubar o tal homem que desconfiara estar seguindo o grupo... É nesse exato momento que Tonico, sem vacilar, arrastou-o para fora e, já na rua, andando em ritmo só ligeiramente apressado, empurrou-o para dentro de um carro, o motorista já a postos, deu ordem de partida imediata. Zé e Tonico mudos, caras de susto. Seus amigos, ainda muito pálidos, estavam reduzidos a imensos pontos de interrogação, olhares fixos em Tonico, evitando falar. Quem diabo era aquele matuto que o companheiro colocara entre eles? O que significava a ação sustada com o fuzuê de uma galinha (uma galinha?!?) em polvorosa no meio da agência?

- É, o véio aqui achou que tava vendo coisa, mas hoje sei certo, num é invenção não, o Seu Tonico tinha uma arma escundida naquela sacola que arreparei no meio da confusão. Inté, acho sim, que os que tava com ele também tinha... Disse num precisá, mas Tonico insistiu em levá a minha pessoa prum taxi, me deu dinheiro pro móde voltá na mesma hora, que inda nem bem tinha chegado... Ele só carecia saber... Quando ficou só aqui com o véio, um minutinho só, quando voltou a voz minha e a dele... Só carecia saber se aquela galinha se tratava da Genú. E, depois que disse que sim, não era outra senão a própria, num deu pra explicar mais nada, ele tava num aperreio só e me pediu pra não falá nem com o doutô Tonho, nem com meu cumpade e nem com a mulhé. E, inté hoje, num contei não...
Ninguém mais soube da galinha Genoveva, nem mesmo se ela acabou sendo presa... Mas, bastante tempo mais tarde, em noite de lua cheia, quando papos intermináveis costumavam acontecer debaixo da mangueira e em volta das estórias do caseiro Zé, Doutor Tonho chegou a insinuar que a Genú foi decisiva no salvar Tonico... O velho Zé, batendo a cabeça a concordar, murmurou entre dentes:
- Ora se foi!
Maria Luiza de Carvalho
mluiza_carvalho@yahoo.com.br

2 comentários:

  1. Isa, querida, gostei muito dos seus contos. Adorei a Genú 'repaginada'. Fico pensando em como uma carioca da gema, como você, conseguiu essa linguagem tão interiorana, tiradentina quase.
    Parabéns. Mil beijos.
    Anaelena

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  2. kkkk... adoro esse seu texto, Isa. Que bom que vc o postou aqui neste blog. Beijos
    Marisa

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