segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A BOUBOULINA DO VALDO


Arlete passa as mãos pelos cabelos compridos, tingidos com mechas louras. Satisfeita consigo mesma, conseguiu ficar na praia por todo o tempo de sol forte: está morenaça! Mas agora os prédios da orla de Copacabana começam a fazer sombra na areia, no inverno isso acontece mais cedo. É hora de reunir sua canga, dobrá-la curtinha em torno de seu quadril, a havaiana, a cestinha com a chave de casa. Pronto, só resta caminhar em seu andar gingado e rebolativo que a plebe dos três quarteirões, que a separam de casa, tanto gosta. Quando pensa nisso, nos fiu-fius que terá que ouvir até lá, murmura entre dentes – gentalha! Pensa com desprezo nos homens e pivetes que sem dúvida estarão em seu caminho, embora o sorriso estampado no rosto nos sugira que está longe de se irritar com as, vamos dizer assim, homenagens que recebe.
Mas não, ela não é mulher de qualquer um, ela é classuda e só aceita aproximações com alguém que lhe mereça. Terá que ser alguém bonito como era seu amado, que Deus o tenha, mas também com situação bem estabelecida, para lhe proporcionar o conforto que merece. Por instantes, passam nuvens em seu olhar, ao lembrar do desastre de ônibus que acabou com a vida do seu Arlindo, tão moço ainda, nem teve tempo de lhe deixar qualquer coisa de herança, coitado. Mas já se passaram vinte e quatro anos e ela já virou essa página, já casou e descasou três vezes, a vida continua, não tem jeito. Quem diria, tanto tempo se passou, mas ela continua enxuta, todos pensam que é dez anos mais nova do que de fato é. Ela é que não desmente...
Ainda bem que herdou de suas tias solteironas o apartamento quitinete, assim mora em casa própria, nem tão perto da praia como gostaria, mas em Copacabana, lugar bacana. Ao início de sua caminhada, se dá conta que hoje é quinta-feira, dia de feira na Rodolfo Dantas, que gosta de freqüentar no seu finzinho, quando fica uma patota, todos comendo e bebendo na barraca do Zeca, bom demais! Apesar dos ultimatos do fiscal, a muvuca acaba se estendendo até as 2 da tarde. Ri sozinha quando lembra que Zeca insinua que quando ela está presente, o Genivaldo, fiscal da feira, afrouxa um tanto suas regras porque lhe faz a corte, quer lhe agradar. Arlete não lhe dá confiança (imagina!), um muquirana morador de Campo Grande, não tem onde cair morto, ainda por cima metido a autoridade exigente com o cumprir da lei. Um chato é o que é! Se bem que, Arlete é obrigada a confessar, se considerarmos só sua estampa, o moço não é de se jogar fora. E, apenas por isso, ela não o escorraça, mas também não lhe dá confiança, bem entendido. Faz-lhe bem ao ego, não nega.
Valdo, que detesta que o chamem de Genivaldo, não vê a hora de terminar o trabalho e ir embora. Hoje está particularmente ansioso, pois marcou de ir ver a exposição do célebre Houdon, no Museu Histórico Nacional, no Centro, com entrada gratuita hoje à tarde. Oportunidade raríssima, que ocorre graças ao ano da França no Brasil. Conhece a maioria de suas belas esculturas de estilo neoclássico a partir das entradas virtuais no Louvre, que pratica com regularidade pela internet. Com ponta de amargura, pensa que jamais terá dinheiro suficiente para ir a Paris, muito menos com sua vida de boemia e farras, onde o dinheiro - sempre parco - escorre sem nem se dar conta. O seu salário é bem menor que o mês, ainda mais curto depois que teve a pensão da ex-mulher descontada em folha. Pelo menos não tem filhos para tornar a vida ainda mais complicada. Mora em casa alugada, nas lonjuras de Campo Grande, mas o que paga é de acordo com o pouco que ganha. Para ser honesto, não trocaria a casa aonde mora com quintal e ainda espaço para seu ateliê, por qualquer desses apartamentos pequenos de Copacabana. Vez ou outra consegue vender uma de suas telas de paisagens do Rio, lá na Praça General Osório, amealhando um extra modesto.
Mas, que diabos, hoje irá conhecer pessoalmente o que restou nessa vida de Jean Antoine Houdon, algumas de suas obras mais célebres, como o busto de Voltaire, por exemplo, com uma expressividade que emociona. Tudo isso ele explicou à atual namorada que de arte nada conhece, mas que gosta de acompanhá-lo nas suas andanças pela cidade, nos eventos de preferência gratuitos que não são assim tão raros de acontecer.
Pela enésima vez lamenta os descaminhos em seus quarenta e um anos de vida que o tornou fiscal da prefeitura, responsável pelo andamento das feiras livres da zona sul. Vamos, cara, não seja mal agradecido, você conseguiu um emprego público que muita gente boa gostaria de ter. É verdade, não falta quem queira estar no seu lugar, com um trabalho até agradável, onde tem de madrugar, para chegar junto com a bagunça dos feirantes, mas que acaba cedo, lá pelas duas da tarde. É, não é assim tão mal, dá até para se divertir um tanto e ainda sobra um tempo para usar seus pincéis e tomar uma cerveja com os amigos, que é do que mais gosta.
Chegado a brincar com as pessoas, conhece-as quase todas, feirantes e frequentadores mais assíduos e, modéstia à parte, considera-se simpático e querido pela maioria. O Zeca, por exemplo, dono de uma das barracas de temperos e pingas, super gente boa, adora mangar de deus-e-todo-mundo, incluindo os frequentadores de sua venda de batidas e caipirinhas depois do meio dia. Olha, lá vem chegando a dona Arlete, velhusca crente que abafa, coitada. A bem da verdade, Valdo é obrigado a confessar que se comove com suas faceirices e por isso sente-se quase na obrigação de corresponder a seus esforços de sedução. Quando não está com sua canga mal enrolada no quadril, fazendo-se de sensual, Arlete veste calças justíssimas de cintura baixa, deixando aparecer sua pele esturricada pelo sol, com protuberâncias notórias e flacidez de cinquentona e-lá-vai-fumaça. O Zeca insufla a vaidade da velha e Valdo surfa na onda, faz de conta que lhe arrasta a asa, com mesuras cheias de malícias. Ela finge que o esnoba, ele finge que se magoa e o amor-próprio da quase-idosa fica bem satisfeito. Riem muito, mas na presença da dona Arlete, desempenham o papel a sério. Divertem-se todos, pois o geral das pessoas percebe a encenação, se bem que ela também represente seu papel de quem não-está-nem-aí, embora saia saltitante e feliz.
É curioso, reflete Valdo, mas sinto que as brincadeiras, que dona Arlete nos propicia, despertam um inexplicável e genuíno sentimento de carinho e afeto, que transcende aquele cenário de pequenas vaidades e enganos. No fundo, talvez nos identifiquemos todos com o que há de mais humanamente patético naquela personagem que a velha representa. Digo ao Zeca que a Arlete é minha Bouboulina, aquela do Zorba, o grego, filme que ele não viu, mas que gosta só por me ouvir contar.
É, pensando bem, não tenho muito do que me queixar. E hoje, o Houdon ainda vai me lavar a alma, se vai.


Maria Luiza de Carvalho
mluiza_carvalho@yahoo.com.br

3 comentários:

  1. Parabéns, Isa!!! Sou sua fã!!!
    AP

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  2. Isa, adorei a Bouboulina. Tão real e tão criativo, personagens e narrativa convincentes. Um texto cheio de ternura e alegria, sem a mais remota sombra dos anos cinzentos. E, claro, tem a sua cara.
    Continue.
    Beijos,
    Airton

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  3. Malu, lindo e muito tocante. Beijos, Sylvio Renan.

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