segunda-feira, 6 de abril de 2009

O CARTÃO

Como é que é?
É isso aí que eu te falei. O cara me entregou o cartão dele, assim sem mais nem menos , foi tudo muito rápido.
Assim sem mais nem menos, Ana?
Eu entrei no elevador , tinha um montão de gente, um bebê lourinho no colo da mãe, sabe como é - toda mulher olha pra uma criança - eu olhei. Admirei o bebê, tive até inveja da mulher segurando aquela coisa fofa. Não dei muita bola para quem estava a minha volta. Vi, claro, que tinha um homem ao meu lado, de terno, assim meio grisalho, acho que ele sorria. Só sei que quando saltei no andar do Dr. Arruda ele saltou junto comigo. Era alto, cabelo levemente grisalho, ah... mas isso eu já falei. Enfim, não dei a mínima bola.
Mas se você não deu a mínima pra ele, como é que ele lhe deu seu cartão?
Bem, ele me perguntou se eu conhecia o acupunturista. Chegou muito perto, tão perto que senti o seu perfume. Se eu sabia a sala. Aí eu falei que não. Imagine se eu ia saber a sala de um acupunturista! Então virei-me e entrei na sala do Dr. Arruda, meu ginecologista, lembra dele?
Pararam para beber um coco gelado no quiosque. Lá estavam bebês lourinhos com suas babás enquanto as mães, no ar refrigerado de suas casas, desperdiçavam os sorrisos transbordantes de seus filhos. O sol transformava a praia, o morro lá adiante, e as pessoas que caminhavam no calçadão, numa imensa massa de calor cinzento. Ana afasta do rosto os fios de cabelo por onde descem minúsculas gotas de suor. Não adianta buscar alivio no mar que, com sua água salgada, ajuda ainda mais a esturricar a pele. Chega a amaldiçoar secretamente os verões do Rio de Janeiro que a cada ano voltam sem pudor. Para qualquer lado que ela olhe alguma coisa a perturba. Mulheres perfeitas, mulheres que tentam esconder suas imperfeições, homens que não lhe dizem nada e, homens que lhe diriam muito, se ela tivesse coragem. Sorve o último gole da água tão doce do coco, amassa o canudinho e joga-o na lata de lixo cheia de cocos vazios como tristes cabeças degoladas.
Droga! esqueci de passar o filtro solar.
Lá vem você, Ana, com essa história de novo. Esquece o filtro solar, esquece as rugas.
As rugas tudo bem. Difícil é esquecer aquela mancha acima do seio esquerdo que a cada verão teima em voltar, um pouco mais vermelha, um pouco maior. Começou como uma simples descamação. Um dia Ana puxou a pele e ela soltou, fininha como uma asa de libélula. Voou no brilho da manhã ensolarada como esta. E então pensou: estou descamando. Lembrou-se da frase que leu do amigo Caio: “Tinha secado: esse era talvez o ponto”. Qual teria sido o seu exato ponto? Quando se viu refletida nos olhos de Paulo e se deu conta que já não era mais a mesma? Mas claro que ela continuava a mesma, o tesão dele é que havia sumido. O sexo febril de outros tempos, que irrigara sua pele como uma seiva, havia cessado. Naquela manhã, ensolarada como esta, Ana se deu conta que algo se inquietara para sempre no fundo do seu ser.
Em que você está pensando Ana?
Em nada. Sei lá. No bebê do elevador. Se eu tivesse um filho seria lourinho?
Ora, Ana, não vamos entrar de novo nesse assunto. Olha a sua volta mulher, veja que manhã caliente, tem tanto homem bonito, sarado, dando mole por aí. Não é o Gilberto aquele ali? O Gilbertão do nosso tempo? Tá meio caidaço, não?
O Gilbertão fora só mais um na vida de Ana. O “nosso tempo” ela agora percebe que fora o tempo do desperdício. De sorrisos que endureciam no rosto madrugada afora, de beijos que queimavam a boca, de olhares que sinalizavam que o sexo viria depois, sem vontade, entre as dobras do lençol que cheirava a alvejante. Ana detestava os motéis e mesmo assim. Um dia numa festa, conheceu o Paulo que a beijou diferente, quis saber quem era ela e fez com que o sumo do amor corresse nas suas veias irrigando os poros.
Mas afinal Ana, o que dizia o cartão?
Ora, nada. Embaixo do nome dele estava escrito: Diretor Executivo.
Uau! De quê?
Ana não sabe onde pusera o bendito cartão. Que atrevimento daquele homem que mal olhara para ela, mal falara com ela e de repente, entra na sala do Dr. Arruda e lhe entrega o cartão. Sob os olhares das outras mulheres, ela o guardou fervendo como um segredo. Lembra-se muito bem do que estava escrito. Um nome duplo, um cargo importante, uma firma conhecida, dois telefones, e-mail e o celular. Ele entregara tudo. À noite Ana é assaltada pela lembrança do perfume dele. Sonha com cheiro de criança, com as mulheres da sala de espera do Dr. Arruda que gritam palavras sem som. O quê? Ao acordar no quarto escuro, a única luz vem da tela do computador. Ana levanta-se e vai em busca de qualquer coisa. Uma mensagem. Nada. Há quanto tempo ela não recebe uma mensagem que valha a pena, que seja endereçada a ela, de alguém que tenha pensado nela. Então lembrou-se do cartão.
Diretor Executivo de quê, Ana?
Não sei. Não te falei? Perdi o cartão.
No ombro, perto do canto esquerdo do coração, a cada ano, a mancha aparece maior e mais vermelha. Como um mapa ela faz a geografia de uma seca. Do processo que começou lento, de dentro para fora, do coração para os braços, porque foi o coração quem primeiro começou a ficar surdo para suas próprias batidas. Depois foi a vez das mãos que pouco a pouco se enrijeceram para um gesto de carinho. Por fim os sorrisos sumiram do seu rosto. A última gargalhada ficou perdida no tempo. Mas, ao abrir a janela para o novo dia, Ana lembrou-se da sacola do supermercado. Lá no fundo, perdido entre a nota das compras estava o cartão. Nome duplo, cargo importante, firma conhecida, telefone, e-mail e celular. Ele havia lhe entregue tudo.

Maria Helena Mossé
setembro de 2008

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